UMA CANOA PARA O CÉU

                        Seu Lolô foi um grande pescador. Um mito que ficou na
lembrança. Fazia canoa, remo, redes, currícos e jerivás. Morava com o único
filho, o Maequinho, pros lado do Jairê. Estava picando fumo de rolo quando sem
mais nem menos falou:- Tive uma visagem! Preciso fazer uma viagem logo… Logo.
Sonhei que vou morrer sem conhecer nada do mundo, mas antes que a vida vá embora
eu farei um longo passeio.
                   O povo quando soube da
novidade ficou de olho cumprido espiando. Seu Lolô foi à mata, escolheu a
árvore certa e começou o que tinha se proposto a fazer. Levou tempo a concluir
a embarcação, mas um belo dia, ali estava ela, leve e perfeita.
                   O rio Ribeira é imenso, 470
km de extensão, nasce no estado do Paraná, percorre centenas e centenas de
quilômetros e deságua em Iguape no estado de São Paulo. A maior parte do percurso
desse rio é dentro da Mata Atlântica e nas suas margens vivem comunidades
indígenas, quilombolas, agricultores, vilas e cidades. Grandes plantações,
criação de gado e retirada de areia para construção civil.
                   Jairê é um bairro rural de
Iguape, na divisa com o município de Pariquéra e seu Lolô com sua nova canoa
seguiu Ribeira acima a procura das nascentes. Comia do que encontrava. Banana,
mandioca, goiaba, araçá, mexerica e dezenas de outras frutas que crescem a
beira do grande rio. Pescava o seu próprio alimento e desfrutava da
deslumbrante paisagem.
                   De sua canoa ele via o mundo.
O caiçara amainando a terra para o plantio, o gado pastando, a mulher lavando a
roupa da família na margem do rio, a criança brincando, o vento sussurrando, a
lua boiando nas águas e as estrelas cadentes cortando o espaço noturno. Seu
Lolô atracava sua canoa e proseava com as pessoas. Ficou conhecendo a fundo os
problemas regionais, os sonhos, as lutas e realizações do povo caiçara.
                   Vibrou com as pequenas
conquistas dos humildes, sentiu a arrogância dos poderosos, chorou as perdas e
sorriu com as crianças. Muito aprendeu sobre a alma humana, os segredos da
natureza, a flora e fauna de todo o Vale do Ribeira. Descobriu plantas
medicinais com os indígenas, as garrafadas dos caboclos, os remédios caseiros
dos afros descendentes.
                   Ao regressar ao Jairê após
meses e meses de ausência, seu Lolô estava modificado. Menos exigente, mais
compreensivo e alegre. Repintou a canoa e batizou-a com o nome de “A canoa do
Céu”. O povo estranhou, mas ele explicou:- Quando saí para desvendar o mundo,
estava amargurado, não via perspectivas de melhoras para nosso bairro, para a
minha vida e a dos demais moradores da região. Achei que iria buscar a morte,
mas na verdade encontrei a vida e esse passeio marcará para sempre minha
existência. Existem coisas mais importantes que as pequenas desavenças locais,
dores maiores do que as nossas, sonhos a serem plantados, cultivados e colhidos
em todos os locais, independentes dos chefes de plantão. Nós sofremos porque
pensamos que aqui é um inferno, mas estamos enganados, depois de ter
compartilhado de tantos sofrimentos, dores, desilusões e fracassos, posso
afirmar que vivemos num paraíso e essa canoa foi a condução que me levou ao
Céu… “A Canoa do Céu”.
Obs.-
Essa é a nossa sina. Muitos precisam sair de Iguape para valorizar nossa cidade
e notar que realmente ela necessita de tão pouco para oferecer a todos nós uma
vida digna. Saúde, segurança e trabalho pleno… Tão pouco e temos medo de exercer
a cidadania e lutar por nossos direitos básicos.
Gastão
Ferreira

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