SOMBRA

            Adentrei
a casa vazia e a minha espera estavam lembranças há muito adormecidas. No ar um
tremeluzir de saudades, no vaso flores murchas e retorcidas. Na parede um
retrato sorrindo em um casamento feliz. Na sala sofás velhos sobrecarregados de
segredos sussurrados ao pé do ouvido. Muitos risos abafados esquecidos no
corredor. O latido dos cães no quintal, um gato dormindo no abandono da
cozinha.
          Abracei o ar e dancei. Rodopiando ao som de
música antiga vi-me novamente menina. Uma criança banguela, com a mão na boca,
tentando esconder o primeiro dente que se foi. A mocinha tímida contou seu
sonho ao vento e a realidade chegou e tinha um nome. Um nome mil vezes escrito
em folhas de cadernos, páginas de livros, na areia do chão. O nome do homem que
foi o meu único amor.
         Pela manhã casei e a tarde enviuvei. Com
dois filhos o fardo pesou, mas jamais reclamei, pois essa foi à parte mais doce
com que a vida me presenteou. Minha filha formou-se professora, o meu menino
mimado uma bala perdida o achou. Como doeu! Meu mundo envelheceu. Perdi o riso,
o cabelo branqueou e nunca, nunca me recuperei. A dor foi tão profunda que
deitou raízes, se multiplicou em sombras e lágrimas que levaram meu gosto de
viver.
         Minha menina casou-se com um pastor e
foi pastorear no fim do mundo, num lugar imundo onde o pecado mandava e
desmandava. O pastor se perdeu, o demônio venceu, minha filha apanhava do
marido drogado. Adoeceu, quase endoidou, dava aula à favelados num lugar que
desconheço. Meu neto me escreveu, por isso eu sabia o quanto ela sofria, mas o
que fazer se ela casou por amor com o pastor.
         Quando a Morte me chegou estava sentada
naquele sofá. Deu-me a mão, me abraçou, afagou meus cabelos brancos, eu estava
tão cansada!Meu velho corpo cedeu e a minha alma saiu correndo feito criança e
se escondeu no porão. Ela não desistiu! Adulou-me, me consolou, por fim
levou-me, mas o tempo! O tempo passou. Hoje aqui estou nessa casa vazia, casa
que foi minha escola, casa de dor, casa de muito amor.
         Peço desculpas por incomodar com a
minha história! Uma história tão banal. Agora sou apenas uma sombra sem medo,
sou só um pensamento que voltou, sou uma saudade e aquele ali parado junto à
porta é meu Anjo Guardião, o anjo bom que me acompanha. Eu vim mostrar a ele a
casa em que vivi a prisão de onde fugi!
Gastão
Ferreira/2010

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