SOBRE OVELHAS E LOBOS…

         Hoje
estou completando um século de vida. Poucos são os humanos que atravessam esta
barreira de bem com a vida e boa saúde. Minha memória é excelente e lembro cada
pormenor de minha longa estrada. Nasci aqui nesta região e minha família desde
tempos imemoriais apascenta ovelhas. Da casa senhorial sobre o outeiro
avistamos o vale, as pastagens, o rio que sonolento corta nossas terras.
         Criar
ovelhas, tosar, cardar a lã, ordenhar pela manhã e preparar o leite para fazer
o delicioso queijo tão procurado por turistas nos dias atuais é nossa rotina
diária. Vivemos afastados da civilização, raramente recebemos visitas e o
produto de nosso suor, que no passado era confiado a uma cooperativa, hoje é
entregue por meu filho diariamente na cidade grande. Temos um veículo especial
para tanto.
         No
tempo de meu pai e de meus avós os negócios da família sofriam muitos reveses.
Os lobos rapinavam as ovelhas, as encontrávamos sem nenhum sangue, apenas pele
e ossos. Caçávamos os lobos, eram animais ariscos e aos poucos empurramos seu
território para além de nosso vale. Mesmo assim de tempos em tempos éramos
atacados por alcateias inteiras, tais lobos não deixavam rastro e meu pai me
encarregou de achar e exterminar de vez a praga.
         No
ardor dos vinte anos saí à procura do inimigo. Andei por semanas através das
montanhas, campinas, vales. Uma tarde encontrei uma choupana a beira de um
regato e meu coração disparou, a garota mais bela que vi na vida estava bem
ali, com seus grandes olhos de jabuticaba maduras seu sorriso de luz, seus
negros cabelos esvoaçando ao vento que anunciava tempestade. Explicava que era
um viajante quando um homem jovem se aproximou e perguntou o porquê da conversa
com estranhos da parte de Melina… A moça empalideceu e um tanto chorosa esclareceu;
– “Pai! O distinto moço é um viajante que pede pouso e mais nada.”
         Seu
pai foi categórico; – “Filha, não podemos dar pousada e nem receber estranhos
em nossa casa, hoje é noite de lua cheia esqueceu?”
         Melina
tanto insistiu que fui por fim acomodado num pequeno quarto fora da casa. Vi
quando seu pai saiu acompanhado de várias pessoas e se dirigiram para a mata.
Melina foi até meu dormitório e convidou-me a dar um passeio, gostava de
caminhar ao luar.
         Realmente
o amor quando chega é fatal, mal conhecia a garota e já sabia que seria minha
companheira para o resto da existência. Num dado momento, fomos cercados por
uma alcateia de lobos e Melina os enfrentou cara a cara, não entendi por que
contou ao grande lobo cinzento que ela estava apaixonada por mim e que se me
atacasse teria de matá-la primeiro. Os lobos pareciam discutir entre si e nos
deixaram em paz.
         Voltamos
à choupana e Melina recolheu seus poucos pertences, caminhamos até o alvorecer
temendo a perseguição dos lobos, nossa união foi abençoada pelo nascer do sol.
Nosso filho chegou exatamente nove meses depois.
         Hoje
completo um século de vida, meu filho está para festejar seus oitenta anos, não
sei a idade de Melina. Os lobos nunca mais atacaram nossa propriedade, em muitas
noites de lua cheia ouvi uivos no limite de nossas terras. Sonhei que Melina
saiu com nosso filho e o apresentou a um grande lobo cinzento que o lambeu por
inteiro, tal sonho é recorrente e acontece a cada lua cheia. Meus empregados
são todos do local onde Melina vivia, meus parentes estão todos mortos. Na casa
grande somos todos felizes… Melina é o amor de minha vida, meu filho, sua
esposa e meu neto me tratam com carinho. O único fato que não consigo explicar
a mim mesmo é o porquê de não envelhecer. Minha aparência é de um homem de
trinta anos, Melina aparenta sempre a mesma idade, uma saudável garota de vinte
anos, meu filho e meu neto pararam nos dezoito anos. Ontem a noite foi noite de
lua cheia, ouvimos o uivo distante do grande lobo cinzento, o chefe da alcateia
que só ataca fora dos limites de nossas terras, num relance notei que todos os
presentes têm olhos de lobo, os mesmos olhos do pai de Melina, meu sogro, um
jovem que raramente nos visita.
Gastão Ferreira/2012
        
          

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