PROCISSÃO DOS MORTOS

            Quatro
horas da manhã… Véspera do Dia de Finados. Sentado em um banco na Praça da
Matriz, aprecio a paisagem noturna. Uma leve sonolência e a neblina se
dispersa. Ocorre uma sutil mudança, vozes e vultos do passado se materializam. Meninos
mortos, se esquecidos da carne, correm envolta de um coreto a muito
desaparecido. Um Capitão do Mato chicoteia o escravo fujão. Beatas de negras
vestes e negros pensamentos apontam à sinhazinha que abandonou pai e mãe por um
amor desesperado… Não foi feliz! A fome falou tão alto que ela voltou com um
filho bastardo… Ela causou vergonha ao Coronel sem quartel, que guardou seu ouro,
seu tesouro, não para o neto espúrio, essas moedas ficaram para Nosso Senhor e
quem sabe comprarão seu lugar no Céu!
         As autoridades, os mandões do passado,
com as mãos vazias do que foi rapinado, solicitam votos aos assassinos da
moral, aos antigos comparsas das empreitas sombrias… Continuam corrompendo as
sombras e buscando o apoio necessário a novas vilanias… Um homem com um
punhal cravado no peito pede justiça e mostra seu secreto matador…
Adolescentes drogados agridem as flores e pisam a grama do jardim. A procissão anual
dos mortos contorna a praça. Com suas vestes rotas e velas, não apagadas pelo
vento, entoam cânticos pedindo a salvação… Param frente à igreja e exigem
remissão. O assassino deposita a arma do crime, o ladrão o que roubou… O
político jura que não prevaricou e que o dinheiro desviado foi bem aplicado,
mas não confessa o pecado e ainda aponta como safado quem o delatou.
         Os seresteiros, os que desviavam as
donzelas com falsas promessas, agora carentes de amor solicitam compaixão. Na
praça as almas que outrora se compraziam na vingança, na maledicência, na
hipocrisia, pedem por luz, repouso e jamais por perdão. A noiva que enlouqueceu
ao se saber traída e se enforcou, mostra as marcas da corda em volta de sua
garganta e exige retratação. Os criminosos, os venais, os perjuros, os
homicidas e todo aquele que se aproveitou de cargos públicos em favor da
corrupção, entoam ladainhas aos Santos de sua devoção.
         Na praça um murmúrio de vozes invisíveis,
algo estranho no ar, um leve arrepio pedindo atenção… Um clarão desce do alto
e cerca os fantasmas do passado. São as crianças mortas pela fome, pelo
abandono, pelas doenças, pela desnutrição, pelo descaso, pelos psicopatas e que
se acercaram da multidão. Frente à igreja pedem pelos assassinos, corruptos e
ladrões, mas as portas não se abrem não! Um forte vento sopra apagando as
velas, a neblina se dissipa, o coreto sumiu dando lugar a uma cruz de pedra,
símbolo do muito que temos que sofrer por não reagir aos desmandos, à falta de
honestidade, a falta de amor pela cidade que é nosso abrigo. Embora vivos, somos
parte da procissão dos mortos. Dos mortos de sonhos, dos mortos de progresso e
da esperança, não temos voz.
         A procissão anual dos mortos, sempre as
vésperas do Dia de Finados deixou no ar desejos de mudanças, uma vontade de ser
bom, esperança de compartilhar a vida sem ofender aos semelhantes, de viver do
próprio suor, de aplainar caminhos… Somos feitos de pó e ao pó voltaremos. O
que é do mundo fica no mundo, os tais bens materiais, mas nossa alma imortal
leva consigo a vivência dos sonhos, das picuinhas, das maldades.
Não quero encontrar fechada a porta do templo, quero
paz dentro de mim. Sentado em um banco na Praça da Matriz aprecio a paisagem.
Sou apenas um personagem nesse palco vida, sou um voto, uma sombra, um grito de
socorro no silêncio da manhã, que nada me responde.
Gastão
Ferreira/Iguape/2011

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