O ESPELHO E O TEMPO

         Esse
espelho é o meu instrumento de trabalho. Há mais de setenta anos ele conhece o meu
rosto. Meu nome é Benedicto Pereira, o Dito Barbeiro da Praça da Basílica… Aqui
cheguei em 1957 vindo de Registro para substituir um colega por oito dias e fiquei
em definitivo. Foram quatro horas de Registro a Iguape e o ônibus era da
empresa Litoral Sul Paulista, cidade pequena com ruas de terra, praticamente
uma ilha. A única entrada por terra ligava o bairro do Rocio a Pariquera. Todos
os caminhos eram aquáticos. Não havia a barragem nem passagens para os bairros
rurais de Jairê, Mumuna, Peropava, Pé da Serra, Icapara e Barra do Ribeira,
estrada para São Paulo nem pensar.
         Lembro
que a periferia terminava na Rua Ana Cândida, depois, casas só no Porto do
Ribeira. Presenciei o surucar do Valo Grande, em uma única noite a água
desapareceu com dezenas de moradias. Uma tragédia! Mais de vinte metros das
margens desmoronaram e as pessoas perderam tudo o que possuíam. Não cheguei a
conhecer o chafariz nem o coreto que ficavam atrás da Igreja Matriz, mas lembro
do belíssimo chafariz frente ao Fórum atual, também não conheci o Pelourinho.
         Quando
cheguei a Iguape o prefeito era Casimiro Teixeira, os quinze prefeitos que o
sucederam foram meus fregueses. Minto! Dona Bete nunca cortou o cabelo comigo.
Por meu salão passaram padres, os bispos Dom Aparecido e Dom Luiz, o bispo de
Santos, pastores, pais de santo, gente de todas as religiões, pessoas de perto
e de longe, a fina flor da sociedade, ricos e pobres, loucos, pedintes,
romeiros. A todos tratei com o devido respeito e consideração. Seus
comentários, se os houve, foram esquecidos.
         Tem
vezes que me olho nesse espelho tempo e me vejo jovem. Um rapaz de 21 anos em
busca de um sonho. Alguém que confiou no trabalho honesto do dia a dia para
ganhar o merecido pão. Há 55 anos Iguape era bem diferente, duas farmácias, a
Bom Jesus e a Colombo… Três padarias, a do Miguel Ribeiro, a padaria do
Patrício e a de Munitor Cardoso, muitas lojas e todas conhecidas pelo nome dos
proprietários, Casa Evaristo, Horacio de Andrade, Gasparino Costa, Bento Neto,
Dito Santana e outras. Quatro clubes, o Primavera, o 55, o Supimpa, O Peniche
do Porto. Dois cinemas, O Cine Jó no Sobrado dos Toledos era dos padres, o Cine
Lamar era do Nenê da Luz.
         No porto
da balsa, lado do Rocio, existia apenas o Bar do João Flora e algumas casas.
Fora os pouquíssimos caminhões, o transporte era feito por pequenos barcos e
canoas. Não existiam estradas e a cidade terminava no Porto do Ribeira. A Santa
Casa e sua maternidade atendiam aos doentes e as gestantes, os romeiros
chegavam de pau-de-arara e os cavalos eram proibidos de entrarem na cidade,
ficavam aguardando seus donos nos pastos do Rocio.
         A
energia elétrica, fornecida por um gerador, só era ligada das 18 às 24 horas.
Era depois da meia noite que começavam as serenatas. Os carnavais foram
inesquecíveis, as festas marcavam profundamente… São Benedito, Trindade,
Santos Reis, Espírito Santo eram aguardadas com ansiedade e o grande programa
era passear na Fonte do Senhor nos finais de semana. As crianças brincavam, os
jovens namoravam e as famílias faziam seus piqueniques pondo as novidades em
dia.
         Nas
fábricas Palmito Caiçara e Palmito Peniche, moças e rapazes trabalhavam em turnos,
mais de duzentas pessoas tinham emprego fixo. Da Serraria Maneco Rocha, que
lidava com Caxeta e esteiras de Pirí, muitas famílias tiravam o sustento
diário. A Marinha Mercante, a Marinha de Guerra, a Policia Militar, a
Prefeitura Municipal davam empregos aos mais instruídos. A pesca era farta e a
produtividade na área rural garantia a sobrevivência da população.
         Esta foi
a Iguape de minha mocidade, uma cidade ordeira, sem pedintes, sem drogas, sem
assaltos. Gente pobre, mas de uma alegria contagiante, os romeiros ficavam nas
casas dos conhecidos de outras Festas. O povo era extremamente gentil, igual à
hoje, não perdiam uma oportunidade de contar uma boa história e fazer amizade. O
passeio em volta da Praça da Matriz era o programa favorito a uma saudável
paquera. Moças caminhando num sentido, rapazes em outro, o famoso “footing” e
foi assim que conheci Ruth Ribeiro, o amor de toda uma vida… Namoramos por
quatro anos, casamos e vieram os filhos Edson Ribeiro Pereira e Marli Ribeiro
Pereira, ambos professores e formados em nível superior. Temos quatro netos, os
filhos de Edson, a neta Milena é formada em odontologia, Mayara estuda medicina
veterinária e Edson Junior cursa engenharia. O filho de Marli, meu neto
Rodrigo, será o mais novo dentista da família.
         Quem me
entrevistou, perguntou se minha vida valeu a pena? Qual o recado a ser mandado?
Nenhum recado! Eu respondi… Trabalho desde os dez anos de idade, sou um homem
que estudou até a quarta série do primário, alguém que sempre trabalhou
honestamente como barbeiro, alguém que conheceu muitas autoridades, juízes,
delegados, doutores, religiosos graduados, pessoas ricas e pessoas sem posses,
a todos atendi sem distinção… Realizei meus sonhos, digo que fui alem do que
ousei sonhar. Tenho uma família da qual me orgulho, bons filhos e excelentes
netos, mas nada disso teria ocorrido se numa tardinha na Praça da Matriz, uma
mocinha linda, tão sonhadora quanto eu, com estrelas nos olhos, que por
cinquenta anos compartilha minha vida, chamada Ruth Ribeiro não tivesse me
aceitado como esposo. A essa amiga, essa companheira, essa metade de mim, essa
terna luz que me ilumina, eu agradeço toda a felicidade alcançada.
         Esse
espelho é o meu instrumento de trabalho. Há mais de setenta anos ele conhece o meu
rosto… Conhece cada ruga com que o tempo me presenteou, partilhou das minhas
poucas dores e das muitas alegrias… Sorriu ao jovem sonhador e ainda sorri ao
velho companheiro de trabalho. Ele sabe o quanto sou grato ao Criador e o
quanto sou feliz… Obrigado.
Gastão Ferreira/2012 

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