DONA SERAFINA

            Ano de 1909, época de domínio dos coronéis em Iguape. O
antológico bloco carnavalesco Avança chama o povo à folia. Uma infinidade de
embarcações cruza diariamente o Mar Pequeno. A barragem não existe e a canoa é o
meio de transporte mais comum. Na Prefeitura manda o Coronel Antonio Jeremias
Muniz Júnior. Na Praça São Benedito, no sobrado dos Toledos seus proprietários
recebem a elite iguapense para alegres saraus. As famílias moradoras do centro
histórico buscam a água diária no chafariz da Praça São Benedito, as pessoas
vindas dos sítios procuram por cartas e telegramas no antigo correio, um belo
sobrado que é o orgulho da cidade. Foi nesse ano e nesse contexto que nasceu
Serafina Pinto Nunes.
            Seu pai, Antonio do Amaral Pinto e sua mãe, Ana Catarina
Pinto possuíam terras no Rio de Una. A família era grande, oito filhos.
Serafina era a mais velha, depois vinham Antonio, João, Arlindo, Salvador,
Rosália, Maria Júlia e Alta. O irmão Antonio participou da revolução de 1932,
ficou longe da família por 18 meses enfrentando muitos perigos. Voltou incólume
para morrer afogado no Rio de Una alguns dias após o retorno das sangrentas
batalhas. Para a menina Serafina a vida no sitio era uma fartura. A infância
foi breve e feliz, aos dez anos já trabalhava como gente grande, o normal para
a época. Alem da lavoura de arroz, tinham roçado de mandioca, canavial,
bananal, cafezal, uma grande horta para garantir a couve, o tomate, a cebola, a
hortelã, a abóbora, a vagem e uma infinidade de diferentes produtos. No pomar
colhiam as frutas da estação; mexerica, cajá-manga, laranja, maracujá, araçá, jaca,
pitanga e muitas outras frutas.
            Da cana faziam melados que vendiam em botijas de barro, o
açúcar era comercializado e trazido para a cidade em canoas a remo num percurso
rio acima de três horas. Bolo de roda, farinha d’água, a criação de suínos e as
inúmeras galinhas que chocavam embaixo do assoalho da casa também garantiam
parte da renda familiar. Do rio frente a casa vinha a traíra, o bagre, o pitu,
o robalo, o nhundiá, o nhacundá, o saguarú, o mandi e o jacaré. Na mata
atlântica, graças aos bons serviços de Fidalgo e Fininho, cães de excelente
faro e exímios caçadores buscavam a carne de tatetos, quatis, tamanduás,
capivaras, tatus, paca e a raposa para fazer a farofa da qual Serafina até hoje
sente a falta. Nas arapucas de bambus prendiam saracura, perdiz, sabiá, macuco
e jacu. Serafina está com 103 anos, se lembra de todos esses nomes e também das
diferentes maneiras de preparo dessas “iguarias” do passado.
            Serafina recorda uma Iguape que nós jamais conhecemos.
Desde criança passava alguns dias na cidade, um de seus avôs foi o caseiro da
chácara do senhor João Hipólito Gato, hoje, chácara Yanaguizawa. A menina não
perdia Festa de Agosto, mas nas suas lembranças a Festa não era tão agitada
como as atuais, não havia estradas, as pessoas vinham a cavalo, em carretas, em
pequenos e grandes barcos.
            Serafina casou aos 27 anos com José Martins da Silva, com
ele teve três filhos, Maria das Neves, Benedito e Antonio. O enlace durou seis
anos e dois anos após a morte de Zé Martins, Serafina encontra o grande amor de
sua vida no comerciante Vitôr Neves (É assim mesmo, com acento no o) que lhe
deu dois filhos, Joselino e Iza. Com exceção de Maria das Neves, todos os
filhos de Serafina morreram crianças.
            Devido a seu comercio, Vitôr comprou em 1943 uma casa no
Funil de Cima, Rua das Neves 110. Era ali que praticava escambo, o dinheiro era
escasso por esta época, com os produtos trazidos do sitio. No ano de 1950 Vitôr
faleceu, Serafina e a filha Maria das Neves se mudam em definitivo para o
centro da cidade. Nesse tempo o lagamar chegava aos fundos das casas situadas
no Funil, a Avenida Princesa Isabel não existia e Serafina recorda que o
tráfego aquático era intenso no Mar Pequeno. Barcos pesqueiros de grande porte,
barcos carregados de banana, barcos transportando caxeta. Navios de passageiros
que iam ancorar no Porto Grande eram uma festa para seus olhos. O movimento era
contínuo faz questão de reafirmar.
            Serafina aos 41 anos, viúva duas vezes, foi tocando a
vida e a vida forçou a barra. Maria das Neves, a única que restou de sua grande
família, casou com João Marcelino de Souza (Janguinho Amborê), funcionário da
Sabesp e vieram os sete netos, Célio, Marcelino, Jairo, José, João, Eli e
Lenira. Falece Maria das Neves e Serafina assume os netos, todos pequenos,
Lenira estava com oito anos. Os netos criados com sacrifícios pela avó/mãe
tornaram-se pessoas dignas, trabalhadoras, honestas. Deram muitos bisnetos a
Serafina.
            Essa é a história de Serafina Pinto Nunes, uma história
aparentemente banal, mas para quem sabe ler nas entrelinhas é a história de
quem lutou desde criança contra os nefandos fados e venceu. Superou a partida
de dois esposos, a perda prematura de todos os filhos de seu generoso ventre, mas
com seu pouco estudo educou os netos. Uma mulher que soube compartilhar seu
amor, uma mulher que não renegou sua pesada cruz, uma mulher que sofreu, riu,
chorou e viveu com dignidade sua sina.
            Dona Serafina! Eu a conheço há mais de trinta anos e
acompanhei parte de sua luta, hoje está completamente cega. No fim da
entrevista lhe perguntei o que pensava sobre a sua vida.  Sua resposta foi:-“ Meu pai foi um bom homem,
tive uma infância feliz. Vivi o que era para ser vivido, não posso me queixar,
a vida é boa.”
            Sentada na cama, no confortável
quarto que a neta Lenira fez questão de construir para a avó que a criou,
perdida na escuridão de seus olhos sem luz ela conta seus “causos” aos
visitantes. Lembra ainda os nomes dos cães Fidalgo e Fininho que morreram há
100 anos. Descreve a correnteza do Rio Ribeira, a boneca de pano que teve em
criança, o gosto da farofa de raposa, os barcos singrando o lagamar. Uma memória
excepcional para quem fará 105 anos em Novembro de 2014.                Completamente lúcida ela recorda as velhas histórias
contadas por seu pai, se vê menina morando beira rio, lembra dos amigos que
partiram, viaja nos sonhos da moça que foi, namora, dança, canta, chora com a
mulher que perdeu dois maridos, que viu partir todos os pequeninos filhos e que
depois os reencontra nos netos e bisnetos. Essa mulher foi ela, é ela…
Serafina sorri de dentro das sombras e diz que é feliz.(Março/2013).
            Dona Serafina partiu serenamente na noite de 24 de Maio
de 2014. Que nosso Pai Eterno a recompense e lhe dê o premio da vitória; uma
casa na margem de um grande rio, junto com todos os seus filhos, seus cães
Fininho e Fidalgo, e a presença de Vitôr, seu grande amor…  Morrer é trocar de casa; boa viagem Dona
Serafina.
Gastão Ferreira/Iguape/2014/Maio.

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