A NEBLINA

         Quando a
tarde adentrou a noite, uma névoa espantosamente branca envolveu o vilarejo. As
árvores, as casas, os animais perderam seus nítidos contornos. Nenhum grito
infantil despertou o silêncio. Nem as aves do céu, nem os peixes que habitam as
profundezas do rio ousaram quebrar a negra magia que lentamente de tudo se
apossou.
         Martha
espiou por uma fresta da janela. Na calçada quase invisível devido à neblina,
um vulto esvoaçante tomou forma. Era Euclides, um jovem que num tempo remoto,
devido a um gesto tresloucado perdera a vida por amor. Sim! Era Euclides.
Rondava a frente da casa e lhe mostrava o punhal cravado no peito, bem no
coração… Martha ouviu o choro do filho que jamais nasceu. Do feto arrancado
de seu corpo adolescente, fruto de um romance negado, fracassado, despedaçado.
         A
criança que não existiu, segurava com suas mãos de nuvem a mão do pai que nunca
conheceu. Euclides murmurava uma cantiga de ninar ao filho que jamais nasceu…
Martha chorou…
         Sob a
pálida luz da lamparina, Dona Cotinha, sentada na velha cadeira de balanço,
bisbilhotava o comportamento da neta. Martha herdara da avó o porte gracioso,
os grandes olhos ávidos de vida e novidade… Na casa antiga de grossas
paredes, os fantasmas familiares observavam os vivos… Noite de neblina, noite
dos mortos… Há quanto tempo esse estranho fenômeno ocorria? Difícil
determinar!
         Na
cozinha sombras de escravas preparavam a comida em grandes panelas de ferro. No
porão as grossas correntes aprisionavam os negros fujões, na sala os vultos do
Coronel Aureliano e Dona Jocasta dialogavam num linguajar incompreensível, um
misto de português e tupi-guarani.
         Dona
Cotinha, depositária de arcanos antigos, sabia que nem sempre fora assim…
Quando a população abandonou o hábito de sepultar seus mortos no chão sagrado
da capela e passou a enterrá-los no cemitério do povoado próximo a vila, as
almas dos falecidos ganharam liberdade e passaram a vigiar os vivos, a cobrar
promessas não cumpridas, a revelar os segredos guardados entre quatro paredes,
a pedir justiça, a exigir vingança. Quando a densa neblina envolvia a vila,
sempre na mesma data, os mortos voltavam e aos primeiros raios do sol nascente
voltavam a seu mundo sombrio.
             

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