Tapera

         Essa
casa foi construída por meu bisavô Vicente e bisavó Isaltina no século XIX; meu
avô Antonio Galvão contava que aos seis anos de idade derramava água sobre a
pedra da soleira da porta para que os soldados maragatos afiassem seus facões.
No entrevero entre colorados e maragatos o bisavô Vicente perdeu a vida; morreu
de fome e sede amarrado a estaca de prender cavalos e sem denunciar onde mandou
esconder a família. A bisavó viúva, vovô e a irmã, ainda crianças, sobreviveram
à revolução. 
         Vovô
casou no inicio do século XX com vovó Vicentina, rica herdeira dos estancieiros
Honório e Celina; catorze filhos povoaram a casa. Alguns ex-escravos ajudaram
vovô nas lides do campo; plantava amendoim, linho, arroz, trigo, batata, milho.
Criava ovelhas, cavalos, vacas leiteiras e gado para abate. Na estância, em
pleno pampa gaúcho, alguns açudes forneciam a água para irrigação. Os arroios e
riachos eram numerosos e corriam por entre a densa floresta que cobria os últimos
vestígios da Serra do Mar.
         Meu pai
teve uma infância feliz; comida farta, professora que mora na casa grande;
gostava de caçar perdizes e patos selvagens, pescar nos açudes. Duvido que
tenha domado um cavalo xucro na vida, mas possuía um alazão e com ele visitava
a namorada, minha mãe, que morava numa outra fazenda, distante algumas horas
das terras de vovô.
         Lembro-me
guri pequeno; o entra e sai de gentes na casa de vovô… A casa parecia enorme;
cinco quartos, duas salas, cozinha, dispensa… Fora da casa, o alojamento dos
filhos e agregados, o curral onde ordenhavam as vacas e domavam cavalos,
vacinavam e marcavam o gado… Um poço e um vasto pomar com laranjeiras,
ameixeiras pretas, goiabeiras, abacateiros, marmeleiros, jabuticabeiras,
bergamoteiras pés de romã e figueiras… No final um bambuzal que servia de
latrina… Um arroio com água límpida corria sossegado e era a área de banho. A
casa era cercada por um grande jardim e ao lado do jardim um bosque de
eucaliptos.
         Da porta
da casa se avistava as coxilhas e os campos, os animais no pasto, as plantações
e as rezes bebendo no açude. Na cozinha um fogão a lenha que nunca apagava; nos
fundos um forno para assar pães, doces, caças e leitões… Ao redor da
habitação passeavam gansos, galinhas, patos, garnisés, perus e também um
pavão… Gatos e cachorros de caça dormitavam a sombra das muitas árvores
nativas. Pés carregados de araçás, araticum, amoras, butiás e maracujás do mato
completavam a paisagem. 
         A casa
viveu momentos felizes; muito trabalho, muitos risos, muitos dramas… Poucas
mortes e muitos nascimentos; uma vez por ano havia um baile… Famílias
chegavam ao anoitecer ao som de gaitas; arregimentavam pelo caminho os vizinhos
e traziam galinhas, doces, bolos… Cantavam e dançavam e depois era marcado o
dia do grande baile em comemoração a colheita do arroz… Lembro-me criança, de
olhos esbugalhados, espiando o fandango.
         Tudo
isso passou; todos os tios casaram, constituíram famílias e vovô e vovó, já
velhos, foram morar na casa da cidade… Meus tios foram pessoas maravilhosas,
grandes contadores de causos, amorosos e gentis… Vovô era um patriarca,
poucas palavras, dono de gado e gente… Vovó submissa, com seu vestido
comprido, cheio de bolsos, onde escondia todos os doces do mundo.
         Tudo
isso passou, nenhum tio está vivo; da numerosa família só uma tia sobrevive.
Sou grato por ter participado desse filme vida; minha infância foi povoada de
momentos felizes… Que saibam de onde estiverem que jamais os esqueci…
Respeitei e amei a todos; fui para longe viver minha vida e os laços foram
rompidos, mas carreguei a todos na lembrança.
         A vida é
apenas isso; um filme! Hoje, olhando a foto da casa em ruínas de vovô e vovó, o
cenário onde foi representada esta grande produção artística que envolveu tantos
personagens, tantos sonhos; noto que o espetáculo findou… A única coisa que
espero é que um dia, num outro tempo, em outro lugar, em outro cenário,
possamos nos reunir para recordar desse fantástico passeio na Terra… A imagem
dessa tapera, a casa dos meus antepassados, seguira comigo para a eternidade.
Gastão Ferreira/2014

Deixe um comentario

Livro em Destaque

Categorias de Livros

Newsletter

Certifique-se de não perder nada!