O bêbado e o beato

         Quando
o seu Horizontino faleceu, também morreu o Zé Baiacu, o maior pinguço da
cidade. O guardamento de seu Horizonte, o Bom, foi no velório municipal. Noventa
e cinco coroas fúnebres, com o seu nome, enfeitavam o recinto; ao lado o
esquife de Zé Baiacu, um morto esquelético, com cara de bêbado, cheirando a
pinga… “Uma vergonha!” dizia a elite local, reunida para o último adeus,
“onde se viu velar um santo ao lado de um pecador?”
         Seu
Horizontino foi uma pessoa aparentemente normal; fofoqueiro, paquerador,
proprietário de um supermercado famoso, aumentava o preço dos produtos a seu
bel prazer; estar de mal com seu Tino era sinônimo de passar fome, adeus
fiado… Nos bingos beneficentes sempre doava os melhores brindes, não perdia
missa e pagava corretamente seu dízimo; uma alma santa, um anjo no lixo da
vida.
        
Baiacu foi filho único do velho Firmino, pescador dos melhores e já defunto. Zé
perdeu a canoa, a mulher e o filho durante uma tempestade; nunca se reergueu…
Começou a beber e beber e beber. Culpou-se até o fim da vida pela morte da
jovem esposa e do garoto; nunca roubou nem seduziu mocinhas com promessas e
mimos e jamais matou cachorro a pauladas. É verdade que gritava impropérios;
detestava o apelido de Baiacu.
         Estavam
os defuntos a vista dos presentes; os canapés, os lanches, os bombons servidos
aos que se despediam de seu Tino davam água na boca aos poucos amigos de Zé
Baiacu… O senhor prefeito fez questão de abraçar a filha e herdeira de
Horizontino; – “A senhora como proprietária do supermercado “Juntos &
Misturados”, lembre-se; caso necessitar de algo, estamos a suas ordens”…
Beijou a face da empresária, apertou algumas mãos e fez cara de nuvem para a
ralé amiga de Zé Baiacu.
         Duas
horas da manhã; alguns dos amigos de seu Tino foram embora dormir, outros foram
para pizzarias, clubes noturnos, zona rural, zona não rural e muitos outros
lugares. Os colegas Zé Baiacu ressonavam sentados nas cadeiras do velório… Zé
do Copo, um doido varrido no dizer do povo, considerado o melhor amigo de Zé
Baiacu, assustou-se; divisou dois anjos no recinto e ambos discutiam feio no
salão.
        
“Você não tem vergonha? Um anjo da guarda alcoolizado!” criticou Alphonsus, o
anjo guardião de Horizontino.
        
“Passei quarenta anos protegendo o José Macedo de levar tombos, facadas, ser
deportado da cidade, ser roubado, atropelado, incendiado; mereço encher a cara,
comemorar o fim da minha obrigação… Entrego a Deus uma alma sem pecados!”
disse Teophilus, o anjo da guarda de Zé Baiacu.
        
“Esse José Macedo, vulgo Zé Baiacu, nada produziu de útil! Note a nobreza de
Horizontino de Almeida Lameiro; religioso ao extremo, probo, pio, trabalhador, deu
grandes festas em sua mansão e mandava as sobras para o asilo, para a casa da
gororoba dos pobres, foi um honrado pai de família…” apontou Alphonsus.
        
“Desgraçou muitas adolescentes, velho tarado e prepotente, sonegador, corrupto,
desbocado, pilantra que roubava no peso de seus produtos comprados de cargas
roubadas, agiota e politiqueiro…”
        
“Com ciúmes do meu protegido, Teophilus?” questionou Alphonsus.
        
“Zé Baiacu foi um homem bom; quanta moçoila livrou de estupro nas noites da
cidade? Quanto cachorro sarnento alimentou? Quanta gargalhada feliz
patrocinou?… Você Alphonsus não entendeu nada! Não aprendeu nada! Não
evoluiu…” disse Teophilus.
        
“O que vejo é a nata social trazendo flores caras, chorando, lastimando a morte
de um santo homem…”
        
“Estás vendo essa nuvem escura que cobre o corpo de Horizontino? É a
condensação dos verdadeiros pensamentos dos que aqui vieram se despedir do
grande homem… Repara que a névoa que cerca o Zé Baiacu tem a cor azulada,
sinal de paz e harmonia…”
        
“Santo Deus, Teophilus! Não queira comparar um bêbado com um beato…”
        
“Não estou comparando, Alphonsus! Ambos estão de mãos vazias no caixão; a
riqueza de Horizontino não o livrou da morte… Suas más ações, desconhecidas
dos amigos, estão presentes ao redor do ataúde… Nessa hora da verdade,
pouquíssimos não tem do que se envergonharem…”
         Nesse
momento sombras se aproximaram dos mortos; crianças nunca nascidas cobravam de
Horozontino o aborto forçado. A fome, a doença, a maledicência apontavam negros
dedos acusadores para o defunto santificado em vida… Uma criança iluminada e
uma jovem trajando branco se aproximaram do caixão de Zé Baiacu; o menino
depositou uma rosa sobre o peito do pai morto, a mulher beijou a sua testa… O
espírito de Zé Baiacu abriu os olhos e um sorriso modificou seu rosto agora
jovem e saudável: – “Enfim liberto!” murmurou.
        
“Vem pai! Olha quantos amigos vieram lhe dar as boas vindas.” Disse o menino.
        
“Gatos vadios, cães sarnentos, crianças, pessoas de todas as idades, todos
portando flores, cercaram Zé Baiacu; – “Para você, Zé! Que nos ouviu, dividiu o
seu pão, matou a nossa fome com o pouco que tinha, protegeu os animais
abandonados… Para você que nunca nos maltratou, são essas flores colhidas nos
jardins do paraíso… Vem Zé! Uma nova vida te espera… Venha!”  
        
dois mil anos ELE falou; Onde estão os que te acusaram? Eu não te condeno… Vá
e não peques mais! Na casa de meu Pai há infinitas moradas…
Gastão Ferreira/2014
                                                        

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