EM MEMÓRIA (1873-2013)

            Fui considerado a obra da década; o
representante do imperador, o juiz, as autoridades, os prelados, as famílias
tradicionais, o povo e as fanfarras saudaram meu nascimento. Encurtei caminhos,
evitei fadigas, mitiguei a sede de milhares de pessoas, servi de ponto de
referência ao romeiro e ao turista. Fui eternizado em quadros e fotografias.
Cantado em prosa e verso, assisti serenatas ao som de violas caiçaras, fui o
coração da cidade, dividindo com o Bom Jesus o reconhecimento da população.
            Iguape estava no auge, seu Porto
Grande rivalizava com o Porto de Santos, o arroz era exportado para o exterior,
móveis vindos da Europa enfeitavam os belos casarões. A cidade era famosa e seu
nome respeitado no mundo inteiro. Os sitiantes traziam os filhos e agregados
para me conhecerem, eu era o símbolo do progresso, a marca da civilização, o
futuro que despontava radiante.
            A vida passava lenta, o mundo era
grande e a cidade pequena. Ao raiar do dia, as famílias mais abonadas enviavam
seus escravos na busca do suprimento líquido e os cativos comentavam os
acontecimentos da véspera; os navios que chegaram ao porto, os barcos que
partiram, as festas, os saraus, as missas solenes, as desavenças, as eternas
fofocas, os namoricos inconsequentes, os sonhos e lamentos da sinhazinha
apaixonada, a bondade e a maldade de seus amos e senhores. Recolhiam a água em
pequenos tonéis de carvalho. A plebe mandava suas filhas e filhos com seus
potes de barros e moringas, e, eu conhecia cada criança pelo nome.
            Acompanhei silencioso, namoros e
dramas. Muitas lágrimas se misturaram as minhas águas. Eu anotava as dores; as
do escravo açoitado, as da donzela enganada, as da viúva entristecida, as do
menino órfão tentando sobreviver. Também compartilhava das muitas risadas, dos
chistes marotos, dos olhares que se cruzavam como punhais, dos sorrisos que
nada diziam e dos suspiros que revelavam segredos inconfessos.
            Devo minha existência à luta de
muitas pessoas, sou o Chafariz da Praça São Benedito, nasci em 1873 e conheço a
história pessoal de cada habitante da cidade. Vi o menino virar homem, pai,
avô, bisavô. Assisti a decadência física da moça mais bela. Fui o primeiro a
notar os poucos fios brancos e as pequenas rugas que anunciam a velhice se
aproximando naqueles que conheci crianças. Eu guardei palavras sussurradas com
afeto e desejo, palavras levadas pelo vento, palavras apenas palavras.
            Acompanhei a luta do rico que virou
pobre, conheci prostitutas honestas e beatas despudoradas, guardei em segredo
os romances pecaminosos, os encontros e desencontros de casais apaixonados
sobre os lampiões da praça. Participei do apogeu e da queda, observei a
rapinagem, a politicagem, o desamor pelo bem comum. Conheço o nome dos
personagens que marcaram nossa comunidade desde o imperador até o mais
miserável dos viventes; do santo ao libertino, do humilde pescador ao doutor
engravatado, todos eles provaram de minha água. Sei de muitas histórias; dos
escravos libertos por uma princesa, do homem que veio de longe para observar a
pedra que cresce. Do pequeno valo que virou mar, do porto que desapareceu, do
engenho que fechou. As esperanças perdidas, os sonhos mortos, a chegada da
estagnação, a decadência e as tentativas para sobreviver sem perder a tiara de
Princesa do Litoral.
            Apreensivo, assisti a ruína dos
opulentos casarões, a fuga dos jovens para a cidade grande, a tristeza
estampada nos olhos dos pais, dos irmãos, dos amigos. Senti o que os humanos
chamam de saudade, compreendi a grandeza da queda e a voraz passagem do tempo
que a tudo devora.
            Revoluções, guerras, fome, medo,
abandono, carícias, beijos, cantares, foguetes e procissões, passeatas e
comícios, festas e enterros, nascimento e morte; tudo isso guardo na minha
memória. Lembro-me de minhas águas que secaram, dos antigos pintores que me
retrataram em suas telas e dos modernos turistas com suas máquinas digitais.
Carrego um passado de fausto e riqueza, sou o único guardião desse tempo que
passou, sou um ícone, algo que devia ser reverenciado e preservado.
            Daqui, na solidão da Praça São
Benedito observo o garboso leão veneziano, adornando o que restou do sobrado
dos Toledos; uma relíquia do passado, pedindo socorro e não sendo atendido.
Vejo o prédio do correio antigo e as marcas do descaso transformadas em ruínas.
Sinto que minha hora chegou.
            Hoje, inicio da primavera do ano de
2013, começou minha morte. Sobrevivi incólume por 140 anos e meu fim será
banal; garotos jogando futebol e fazendo de mim seu alvo preferencial.
Adolescentes que sabem de tudo sobre computadores, videogames, televisão,
internet, jovens que se dizem civilizados e desconhecem totalmente a minha
fantástica história, herdeiros daqueles meninos que me respeitavam, que eu vi
crescer e se tornarem pais responsáveis, que lutaram por uma Iguape melhor.
Esses mocinhos, dos dias atuais, não permitiram que seus netos me conhecessem.
Comigo levo um pouco da Iguape de outrora… Pichado, depredado, totalmente
abandonado eu me despeço lembrando que um povo que não preserva seu patrimônio
é um povo sem história, e, um povo sem história será fatalmente esquecido.
O
Chafariz da Praça São Benedito (1873-2013)
Gastão
Ferreira/2013       
           
               

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