A vida continua

         Na
casa um cheiro de mofo, portas e janelas fechadas. Na penumbra do quarto ela
preparava a mala para uma longa viagem; o que levar? O que deixar? Abriu o
guarda-roupa, não sabia qual das veste separar. Um velho álbum de fotografias,
sob a cômoda, chamou a sua atenção; espiou as fotos, se viu menina brincando na
praça, um retrato da primeira comunhão, noivado, casamento, filhos e netos.
         Pela
fresta da janela espiou a montanha, um bando de brancas garças cruzava o céu; –
“À tardinha elas voltam”, pensou, “todos nós voltamos para a casa no fim do
dia, as garças visitam os rios, os lagos, os remansos, as praias, e depois
retornam aos ninhais; todos nós somos garças nesta vida.”
         O
que levar? O que deixar? Tinha uma vaga impressão de que não era a primeira vez
que empreendia esta viagem; – “A vida é uma escola”, dizem, “concluí mais um
curso. Hora de voltar para casa. Voltar para casa! Quem virá me buscar? Esta
escola foi minha prisão; aqui chorei, sofri, me feri, também tive momentos
felizes. Amigos? Bem poucos, a maioria apenas colegas de classe. A competição
sempre dominou; ciúmes, inveja, intrigas, rasteiras sutis, coisas para
esquecer, o preço pago pelo aprendizado.”
         O
que deixar? Tudo. Tudo? Bagagem leve, quase sem peso, pois o caminho é
desconhecido. O que tenho é da escola, não é meu. De meu, só o que aprendi, e o
que sei está dentro da minha mente; sair da escola, aplicar o aprendizado,
viver de verdade, reencontrar os verdadeiros amigos, os parentes que me
esperam; viver… Viver e viver.
         Sem
a bagagem ela saiu para o jardim, parecia flutuar; avistou as montanhas, foi
até lá. Espiou o mar, as ondas se esparramando sobre a areia; bandos de
gaivotas, gaviões, estrelas-do-mar, caramujos, conchas. Voltou à montanha,
olhou o lagamar; prateados robalos saltavam à flor da água, os pescadores
lançavam suas redes, um beija-flor passou veloz, a lua surgiu e a paisagem se
modificou; um barco iluminado pela luz do luar, uma nave de brancas velas; –
“Minha condução para casa chegou; hora de partir.”
         Sozinha
tomou seu lugar na embarcação; velas abertas à todos os ventos, o barco buscou
o caminho do mar. Ela sorriu, admirando a paisagem; o mar era o tempo, o oceano
da eternidade, ela recordou e lembrou; havia uma casa para voltar, uma morada
numa praia de areias brancas, um lugar onde a vida continuava entre as estrelas
do céu.
         O
barco ancorou, dezenas de pessoas estavam à sua espera, a primeira que
reconheceu dentre elas foi a sua mãe, agora jovem, linda, saudável; correu ao
seu encontro. Notou que não era mais a velha estudante que partira da Terra,
era agora apenas uma menininha feliz. A mãe a abraçou; acabou o medo, a
solidão. Estava novamente em uma das casas do Pai. A vida continua…
Gastão Ferreira/2017            
           

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