A escrava
         Tem
vez que eu acho que cachorro é um bicho superior, tipo assim “canis sapiens”,
já nascemos sabendo latir, não precisamos aprender a nadar, andar. Se bem que
conheci alguns filhotes bem abobadinhos; – “Pega, Rex! E Rex fazendo cara de
nuvem, paradão… Eu, hem! Cachorro sem noção.”
         Ando
matutando estas coisas por causa da Milady, filha do meu dono, uma “sapiens”.
Se ela é filha de um “homo sapiens” com uma “mulher sapiens”, ela é uma “guria
sapiens”, tem quinze anos de idade, e está concluindo o ensino médio.
         Depois
que a Ministra dos Direitos Humanos se disse uma escrava por ganhar somente
míseros R$33.000,00, Milady cismou que quer ser escrava. Tô nem aí! Ela já
passou pela fase de veterinária, e me vacinou algumas vezes, e sem necessidade;
também quis ser modelo, atriz, cantora de ópera, professora, policial e
assessora parlamentar.
        
uma dó de ver a menina na sua fase escrava; não toma banho, não arruma o
cabelo, anda para lá e para cá com uma algema em cada pulso, vestido
amarrotado. A professora Áurea, que lecionou aqui no sitio, deu uma bronca na
guria; – “O que é o estudo!”, disse, “Você não está se comportando como uma
escrava, e sim como uma rapariga relaxada. Onde se viu não tomar banho, sua
porca! Caia na real, você jamais será uma escrava. Acorda! Sua maluca.”
         O
pessoal aqui do sitio é muito prestativo, e Escrava Milady estava passando dos
limites, fizeram uma reunião, e chamaram o Pastor Silas; – “Está possuída pelo
espírito de Isaura”, afirmou a médium e vidente Carlota de Oxum.
        
“Quem é Isaura?” perguntou irmã Zilda.
        
“Isaura, foi uma escrava, sua burra, não assistiu a novela?”, perguntou
Carlota, e mal fechou a boca cinco Isaura se fizeram presentes pedindo luz, e
perdão.
Não entendo
de exorcismo, mas na reunião compareceram duas pomba-gira, dois exus, a
Princesa Isabel, confirmando que realmente tinha assinado uma lei, e que
libertou todos os escravos há muito tempo. Madame Tereza Cristina de Oliveira
Barros, até tentou obter algumas informações da corte imperial, mas a Princesa
Isabel, se negou a fazer fofocas.
O Pastor
Silas é um homem de Deus, sabe das coisas, não se conteve e deu um basta na
palhaçada; – “Parem imediatamente com esta encenação! Milady, o que deu em
você, minha filha?”
– “Eu quero
ser uma escrava para ganhar R$33.000,00 por mês…”
– “Eu também
quero” gritou Dona Cotinha, “e podem me amarrar num tronco todos os dias.”
– “Eu deixo
que o meu dono faça comigo tudo o que ele quiser, menos beijar na boca…”,
disse irmã Odete, que na juventude foi garota de programa.  
A coisa
estava ficando feia, a mulherada toda querendo ser escrava, foi aí que o Pastor
mostrou a sua sabedoria; – “Milady! Existe dois tipos de escrava… A preta que
apanha, lava roupa, carrega lenha, faz comida, dorme numa senzala em troca de
comida. E, tem a escrava branca, aquela que ganha apartamento, carro de luxo,
viagens de iate, avião… Qual delas você pretende ser? Responda!”
– “Meu sonho
é ser uma escrava branca; parar de estudar, conhecer Paris, Roma, Londres,
Cananéia…”
– “Cananéia!
Oh, coitada!” murmurou Dona Cotinha.
Pastor
Silas, apesar de ser um homem de Deus, tinha um método bem antiquado para
tratar de chiliques e frescuras de adolescentes; tascou a mão na cara de
Milady; – “Vá para a casa tomar um banho, sua imbecil, burra, imatura, bicho do
mato, jacu… Você sabe muito bem que nunca poderá ser uma escrava branca, e
mesmo assim fica perturbando o sossego dos moradores do sitio…”
– “Mas por
que eu não posso realizar o meu sonho, Pastor? Por que não posso ser uma
escrava branca?” perguntou Milady, com a cara vermelha, devido ao tabefe.
– “Porque
você é mulata, Milady… Você é preta, esquece a escrava branca e vai estudar
para ser alguém na vida, sua besta.”, disse o Pastor Silas.
Foi assim
que passou a fase de “escrava” da menina Milady, agora está se preparando para
a fase política; quer sair candidata à vereadora na próxima eleição, e já
começou a afiar as garrinhas. Passa horas e horas fazendo discursos para o gato
Nicolau, que é surdo.
Ainda bem
que sou apenas um “canis sapiens”, estou feliz com o que sou, e doidinho para
conhecer uma “cadelinha sapiens”, mas esta é outra história.
Omisso, um
cão rural
Gastão
Ferreira/2017
        

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