Seu Raimundo e o Coisa-ruim
Sexta
Feira Santa, dia em que Nosso Senhor visitou o inferno… Dia em que o Diabo
(também chamado de Coisa-Ruim, Tinhoso, Cramunhão, Capiroto, etc) manda no
mundo… Dia em que o mal ronda pelos caminhos tentando os servos de Deus…
Nesse dia, dizem os antigos, o melhor é ficar em casa, jejuar, não comer carne
e nem ingerir bebidas alcoólicas, rezar e se arrepender dos muitos pecados
praticados.
Seu
Raimundo, nascido no bairro do Peroupava, em sua época chamado de Paraopeba e
situado na zona rural de Iguape, conseguira realizar seu sonho juvenil: montar
um entreposto, nome bonito para um armazém que vendia de tudo, desde fumo de
corda, galinha caipira, Biotônico Fontoura, até tainha defumada. A venda foi
adquirida lá para os lados do Jairê.
Naquele
final do século XIX a religião era levada a sério e nenhuma bodega ou matadouro
funcionavam durante a Semana Santa. As crianças não brincavam, as moças não
namoravam, as mães não batiam nos filhos sapecas, as pessoas não cantavam, as
janelas permaneciam fechadas em sinal de luto profundo e de respeito às dores
sofridas pelo Salvador.
Com a
vendinha fechada, seu Raimundo juntou a família e resolveu visitar os parentes
em Peroupava. Naquele tempo não existiam estradas na região e o único caminho
para chegar ao bairro rural era o rio Ribeira de Iguape. Também não existiam
veículos automotores, nem bicicletas, nem ônibus, nem avião. O único meio de
locomoção era a canoa. Os mais arranjados possuíam charretes, porém não havia
estradas para que tal veículo transitasse fora dos limites da cidade.
Na
canoa da família, seu Raimundo colocou os mantimentos, a esposa, os dois
filhos, o cachorro e tomaram o rumo de destino, seis horas remando para chegar
ao término da viagem. Frente ao bairro dos Engenhos existia um canal, na
verdade uma vala, chamado no linguajar caiçara de Furado, que unia o rio
Peroupava ao rio Ribeira e encurtava o percurso em duas horas. O problema era
que o tal Furado só dava passagem durante a maré cheia, pois na vazante se transformava
em um lamaçal.
Seu
Raimundo, na pressa de rever os parentes, adentrou pelo Furado e após uma hora
remando, a maré vazou e o Furado secou. Mutucas, pernilongos e
mosquitos-pólvora fizeram a festa. Seu Raimundo soltou o primeiro palavrão.
Dona Cotinha avisou:

Mundinho! Mais respeito. Hoje é Sexta Feira da Paixão!
As
crianças abriram um berreiro, o cachorro latia desconsolado, dona Cotinha se
coçava e seu Raimundo já estava arrependido de ter saído de casa justamente na
data fatídica, não se conteve e exclamou:
– Nem
o Diabo é capaz de tirar a gente desse atoleiro!
Mal
acabou de pronunciar tais palavras, pareceu que o tempo parou. Nenhum trinar de
pássaros, nenhuma brisa, nenhum barulho. Só o silêncio, numa calmaria anterior
à Criação, quando o mundo estava sendo sonhado na mente de Deus e nada ainda
existia…
De
repente, tudo explode em sons. Dona Cotinha se benze, os filhos se abraçam
buscando mútua proteção, o cachorro gane baixinho e um vendaval surgido do nada
arremessa a canoa no meio do matagal, vários metros longe da margem do
Furado… Uma gargalhada assustadora, e o tempo retornou como se nada
acontecera.
Seu
Raimundo aprendeu a lição. Nunca mais durante a sua longa vida saiu de casa
numa Sexta Feira Santa, pois é nesse dia que o Diabo está solto, e nunca se
sabe o que ele pode aprontar…
Gastão
Ferreira/2019
(História
verídica, ocorrida em Iguape e transmitida de geração a geração pela tradição
oral).

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