O lobisomem da Toca do Bugio
Noite
de lua cheia, na estrada que liga a cidade de Iguape ao bairro de Icapara, nas
proximidades da Toca do Bugio, um recanto paradisíaco, morada dos caiçaras
endinheirados, dos que foram recompensados com todas as coisas boas da vida,
nessa estrada que corta solitária a Mata Atlântica um rapaz estava desacordado
a beira do acostamento; moreno claro, corpo perfeito, foi encontrado despido. Uma
ambulância levou a provável vítima de atropelamento para a Unidade de Saúde da
cidade.
Doutora
Maria Helena era a médica de plantão; examinou com atenção o jovem. Alguns
arranhões, um hematoma na cabeça provavelmente causado por um veículo em alta
velocidade, nada indicava que estivesse alcoolizado, mesmo assim era bom fazer
um teste; a médica saiu em busca de um bafômetro.
Doutora
Maria Helena estava feliz, amava o seu trabalho, salvar vidas sempre foi o seu
sonho desde criança, e nos últimos meses arrancara dos braços da morte dezenas
de pacientes contaminados pelo Covid… Era uma raridade alguém procurar
atendimento médico sem os sintomas do vírus causador da pandemia; com o
bafômetro na mão, abriu a porta do quarto… Ficou paralisada.
Sobre
a maca repousava um imenso e negro cão, o jovem havia desaparecido… A lua
cheia espiava através da janela que dava para a rua, e a janela estava
fechada… A médica foi à procura do serviço de vigilância, precisava encontrar
o jovem paciente, e descobrir quem colocara um cachorro desmaiado na sala da
emergência.
O
vigilante de plantão acompanhou a doutora, a sala de emergência estava vazia, a
janela escancarada, a lua cheia brilhando; – “Doutora, a senhora tem trabalhado
em excesso! Repouse um pouco, descanse alguns minutos, a senhora anda muito
estressada…”, falou o vigia.
–
Eu não estou ficando louca! Eu sei o que eu vi. Tinha um imenso cão de negra
pelagem sobre a maca, eu sei… Eu vi!
O
homem examinou a lataria do carro, estava amassada bem no local onde o cão
batera com a cabeça… Na verdade ele não estava dirigindo em alta velocidade, pilotava
atento, pois, muitos animais silvestres atravessavam a estradinha após o
anoitecer… A lua cheia clareava toda a extensão do caminho, deu para perceber
que um cachorro de grande porte andava pelo acostamento, e vinha na direção do
veículo, diminuiu a velocidade… As visagens eram comuns próximo a Toca do
Bugio, e ele não acreditava no sobrenatural.
Quando
o cão estava bem perto, o motorista notou uma alteração no comportamento do
animal; ele ficou em pé sobre as duas patas trazeiras, seus olhos amarelados e
vermelhos brilharam, e o motorista pressentiu que a fera saltaria sobre o
carro… Acelerou o veículo e atropelou o bicho, o cão foi jogado violentamente
para o acostamento, o homem apavorado com o encontro com o lobisomem aumentou a
velocidade e continuou a sua viagem até o Icapara.
Genival
acordou com a cabeça dolorida, tentou se lembrar do ocorrido; caminhava no meio
da mata fugindo dos raios do luar, tinha a consciência de que era um lobisomem,
e o encanto da lua cheia era fatal… Atravessou uma clareira e a maldição o
pegou… Correu para a estrada asfaltada, precisava retornar para a casa, não
podia ser visto por humanos… Estava andando pelo acostamento quando notou a
aproximação do carro, seu instinto de besta-fera falou mais alto, a fome de
carne e sangue chegou apagando o seu discernimento… Pulou sobre o veículo.
O
choque foi tão forte que reverteu a metamorfose, e o lobo se recolheu dando
lugar ao homem… Vagamente recordou que foi socorrido, estava deitado sobre
uma maca, uma linda moça o atendia, ela saiu da sala, Genival estava consciente
e fingindo desmaio, mal a médica saiu da sala ele olhou para a janela e a luz
da lua o atingiu, e com ela o encanto retornou… Já em fase de transformação
conseguiu abrir a janela e pular para a rua… Tomou o caminho do Morro do
Espia, o caminho de casa… Estava salvo, sua identidade como lobisomem estava
preservada, mas a doutora Maria Helena tinha visto o seu rosto, e caso ela se
ligasse em lendas urbanas descobriria o seu segredo… Precisava fazer uma
visita à médica, mas a visita não seria na Unidade de Saúde… Doutora, me
aguarde!
Gastão Ferreira/2021
Gastão Ferreira começou a publicar seus textos aos 13 anos. Reconhecido por suas crônicas e poesias premiadas, suas peças de teatro alcançaram grandes públicos. Seus textos e obras estão disponíveis online, reunidos neste blog para que todos possam desfrutar de sua vasta e premiada produção.