O espanta demônio
A Igreja
Primos de Gedeão era famosa pelo atendimento aos filhos extraviados dos
caminhos do Senhor; o Pastor Alencar, o bondoso, jamais deixou sem um bom
conselho um alcoólatra, um sem teto, um pedinte, um drogado. A mais do conselho
também servia um pedaço de bolo, um suco, uma cesta básica e raramente algum
dinheiro.
A Igreja
sobrevivia de donativos, e o caixa estava sempre no vermelho. Tinha vez dos
carentes fazer fila na porta do templo; – “O cheiro é de sopa de carne, coisa
fina e cara! Vou esperar e levar duas porções…”, “O óleo de soja está pela
hora da morte, vou descolar um litro com o Pastor Alencar, e vender para
comprar pão” falou um morador de rua.
Aconteceu
que a igreja mudou de Pastor, e Pastor Arildo assumiu o cargo; não existem no
mundo duas pessoas iguais, e a diferença entre os dois Pastores era gritante.
Pastor Alencar cuidava do rebanho com desvelado carinho, preocupava-se com a
ética, os bons modos, a salvação da alma… Pastor Arildo dava mais atenção à
nova pintura da igreja, aos bancos mais confortáveis, as preces mais
chamativas; – “Quem quiser comida que trabalhe e ganhe o sustento com o suor do
próprio rosto”, informava.
A vizinhança
da igreja notou que os pedintes, os bêbados, os sem tetos, as garotas sem
programa, os meninos do mal não mais passavam frente o templo, um pouco antes
mudavam de calçada e atravessavam a rua de cabeças baixas não querendo chamar a
atenção… Quando Dandão, o papa pedras, passou frente à igreja e saiu
correndo, Seu Zé do Povo teve tempo de lhe perguntar o motivo de não mais pedir
dinheiro ao Pastor:
– Nem
pensar! Esse novo Pastor é um espanta
demônio de primeira…
– Como
assim! Espanta demônio?
– O sacana
acredita que todo o morador de rua, pedinte, drogado, ladrão, sem ética e sem
caráter é vítima de um demônio, e agora quando se pede algo na igreja a
primeira providência é um exorcismo… Não reparou nos gritos?
– É verdade,
reparei no alarido… O nosso vizinho já chamou a polícia várias vezes.. Mas me
conta, o Pastor afastou algum diabo de você, Dandão?
– Retirou
três, mas graças a Deus todos voltaram…
– Por que
graças a Deus, não foi bom ele retirar os demônios?
– Sem os
demônios não sinto vontade de me drogar, e a vida sem pedras é muito triste… Ditinha
da Moita abandonou a carreira promissora de garota de programa na madrugada, o
Pastor afastou sua Pomba-gira e a menina não quer mais saber de se prostituir,
agora está trabalhando de cuidadora de idosos tarados, e se dando muito bem…
– Chocante!
– A coisa
está feia, muita gente abandonando essa boa vida sem trabalho, sem contas para
pagar… Seu Tadeu deixou o grupo dos sem tetos depois que Pastor Arildo
retirou uma gangue de demônios que o acompanhava; Seu Tadeu começou a tomar
banho, fazer a barba, trocar de roupa… Foi expulso do acampamento por servir
de mau exemplo aos demais associados…
– Caramba! O
Pastor Arildo é dos bons… Está limpando a cidade!
– Não acredito!
Na verdade ele está tirando o nosso ganha pão, interferindo em nossas escolhas;
estou fora! Agora a igreja só é freqüentada pelos bons de grana, pela elite;
todos de carrão, bem vestidos… Até tiraram o estacionamento de bicicletas, os
pobres que se lasquem!
Dandão
Papa-pedras arregalou os olhos, espiou para a porta da igreja e saiu em
disparada, Seu Zé do Povo jura que notou um homem de capa preta com um chicote
na mão parado frente à porta principal do templo e encarando o Dandão; quem
seria? Sem coragem de perguntar ao Pastor Arildo, agora apelidado de “o espanta
demônio”, ficou só observando o chicote comer solto no lombo de quem não quer
trabalhar…
Gastão
Ferreira/2021
Gastão Ferreira começou a publicar seus textos aos 13 anos. Reconhecido por suas crônicas e poesias premiadas, suas peças de teatro alcançaram grandes públicos. Seus textos e obras estão disponíveis online, reunidos neste blog para que todos possam desfrutar de sua vasta e premiada produção.