Multado na praia
Seu
Pedro Pinga, proprietário do bar “Barbicha do mato”, voltou da cidade grande
com o filhote El-cisco, um cachorro sem teto. Uma beleza o El-cisco, sua
roupinha de pêlos tem várias cores; coitadinho está traumatizado, e tristonho.
El-cisco
morava com Ditinho Meia-colher, o ajudante do famoso mestre de obras Renato
Massafina, atualmente os dois estão desempregados devido ao Covid…
Nós os cães
nos apegamos profundamente ao humano que nos trata bem, e Meia-colher protegia
El-cisco dos males do mundo, e era visto como um deus pelo ingênuo filhote.
A
alimentação de Ditinho Meia-colher era precária, muita sardinha branca, bagre
africano, manditinga; todos peixes grátis e descartado pelos pescadores… Mas
jamais deixou faltar um delicioso e suculento osso de boi para El-cisco.
Devido às
restrições impostas pelas autoridades, todas elas especialistas em saúde
pública, e baseadas na ciência contemporânea, foram proibidos os banhos de mar,
e as praias vetadas a população…
Nossas autoridades
acreditam que o terrível vírus tem predileção por lugares abertos, tipo
beira-mar, praias desertas, estradinhas no meio da mata… Já as vans de
transportes coletivos, ônibus, balsas, táxis lotados, não representam riscos à
saúde do pacato cidadão.
Ditinho
Meia-colher estava passando necessidades; luz e água cortada. Ganhou uma
cesta-básica de um Pastor; El-cisco não comia carne há um bom tempo…
Meia-colher resolveu catar alguns siris para complementar a alimentação, e
colocou El-cisco numa caixa e foram de bicicleta até a Praia do Leste.
Beleza de
passeio, ar puro, mata virgem, praia deserta, e El-cisco feliz da vida saltando
na areia; a Praia do Leste é um lugar solitário, dela se avista a Ponta Norte
de Ilha Comprida, um espetáculo! As montanhas iguapense, a foz do Rio Ribeira,
o encontro das águas doces com as águas salgadas, parece um quadro, uma obra
prima da divindade, um paraíso caiçara…
Mas todo o
paraíso tem a sua serpente, e a serpente se apresentou com farda; -“Você aí,
meliante! Não sabe que foi proibido ficar a beira-mar? Cai fora, vagabundo!”
– “Calma
autoridade! Estou tentando arranjar um pouco de comida para mim e meu cachorro…”
– “Desculpas
esfarrapadas não aceitas, vai ser multado em R$5.000,00…”
– “Seu
fiscal, se não tenho dinheiro nem para comprar comida, onde vou arranjar
R$5.000,00?”
– “Se vira!
Vende a televisão, a geladeira, a bicicleta, o cachorro… Paga ou vai preso, a
escolha é sua…”
Colocaram
El-cisco e Ditinho numa viatura, seguiram para a cidade grande, sobe morro,
desce morro, passaram pelo “Lar dos Amados Filhos da Princesa”, um local
aprazível na orla do lagamar, cedido pela municipalidade gratuitamente como
abrigo aos jovens mendigos, e com água e luz pagas pelos contribuintes. Eles
estavam assando uma picanha, e emborcando umas pingas; algumas meninas de rua,
três travestis e quinze pedintes dançavam alegremente, e agradeciam as marmitas
oferecidas por uma ONG da cidade…
No lagamar
quinze meninos pulavam na água, todos juntos e misturados, alguns
garotos-olheiros observavam a passagem dos automóveis, um táxi com lotação para
a Barra passou em alta velocidade, três motos com escapamento aberto assustaram
uma velhinha… E Meia-colher, o rapaz desempregado, seguia detido…
Seu Pedro
Pinga pagava algumas taxas de seu comércio que estava fechado por lei devido à
pandemia; a fila da lotérica era imensa, e a do Banco um pouco maior, mas
graças ao Bom Jesus todos sabem que o Covid não ataca ninguém em filas ou
aglomerações, o bicho só pega em lugares desertos, ou se a pessoa estiver
trabalhando…
A viatura
que levava Ditinho para a atuação parou na faixa de pedestre, e Seu Pedro Pinga
reconheceu Meia-colher, e Ditinho pediu ao sitiante que cuidasse de El-cisco
enquanto estivesse na cadeia; Seu Pedro Pinga se comprometeu à cuidar de
El-cisco…
El-cisco não
queria se separar do amigo, o pessoal que assistiu a muvuca encheu os olhos de
água… El-cisco está aqui no sítio, e estamos fazendo de tudo para que ele se
sinta bem; fomos até o riacho pular na água, deitamos na estradinha de areia
quente, e corremos atrás de uma moto…
Ainda bem
que o Covid não gosta de cachorro, onde um cachorro arrumaria cinco mil Reais
para não ser preso? Não sei! Ditinho Meia-colher continua detido enquanto os
“Amados Filhos da Princesa”, nossos queridos pedintes, caminham em grupos,
livres e bêbados pelas ruas da cidade; eles se abraçam se beijam, e andam sem
máscaras, porque eles podem…
Omisso, um
cão rural
Gastão
Ferreira/2021
Gastão Ferreira começou a publicar seus textos aos 13 anos. Reconhecido por suas crônicas e poesias premiadas, suas peças de teatro alcançaram grandes públicos. Seus textos e obras estão disponíveis online, reunidos neste blog para que todos possam desfrutar de sua vasta e premiada produção.