Além da imaginação
Ainda
estou atordoada com o que me aconteceu, eu não tenho uma explicação lógica nem
conhecimento para saber se o ocorrido foi um sonho, um pesadelo, ou a realidade
pós-morte.
Eu
me sentia um lixo, uma pária da sociedade, uma inútil, uma mulher sem presente
e sem futuro, e tudo isso devido a um par de sapatos, meu sonho de consumo
nunca realizado, e que acabara de admirar na vitrine de uma loja.
Ganho
meu sustento como manicure; não! Não trabalho num salão de beleza, sou
autônoma. Visito os clientes em suas casas; parece bobagem, mas desde menininha
meu sonho é ter um par de sapatos de legitimo couro de jacaré, coisa cara,
coisa para gente rica.
Estava
ali frente à vitrina, beleza de calçado, seu preço quase um ano de trabalho,
fui andando de costas para a rua, e tropecei no meio fio, fui atropelada e bati
a cabeça… Desmaiei!
Deitada
sobre uma maca, e sendo atendida por uma equipe médica me vi sentada sobre o
meu corpo; o susto foi tão grande que pulei para o chão e saí correndo pelo
corredor do hospital…
Gente
chegando, gente saindo, pessoas chorando, pessoas em estado de choque; – Será
que eu morri, e não sei? Por que as enfermeiras não respondem as minhas
perguntas? Quem são estas estranhas criaturas de vestes brancas que parecem
flutuar no ar? Apavorada sentei num banco no corredor, bem ao lado de uma
velhinha de cara amável; – “A senhora sabe o que está acontecendo comigo?”,
perguntei.
–
Acredito que você está momentaneamente fora do corpo físico, provavelmente
sofreu um choque violento, ou talvez esteja em coma nesse hospital…
–
Lembro que tropecei na rua…
–
Pura desatenção, mocinha!
–
Não! Eu estava ressentida por não ter dinheiro suficiente para comprar os
sapatos dos meus sonhos…
–
Aquele menino que está sentado no fundo do corredor morreu devido aos
maus-tratos da madrasta, ele jamais teve um simples par de sapatos em sua curta
vida…
–
A senhora não sabe o que é desejar um bem material e não poder tê-lo…
–
Existem carências piores, você nem reparou que está descalça! Não usamos
calçados neste lado da vida… Estou aqui na espera de meu neto, o rapaz
desencarnou devido a uma bala perdida, deixa a esposa grávida do primeiro
filho…
–
Oh, coitada da esposa!
–
Não, coitada de você que vai morrer sem ter aprendido a viver, e tudo devido a
um par de sapatos inútil…
–
Inútil jamais! Apenas caros demais para minhas posses…
–
Você teria coragem de sair na rua com um legítimo par de sapatos de couro de
crocodilo? Assalto na certa! Teria de voltar para a casa de pé no chão…
–
É verdade…
–
Aproveite essa breve estadia neste local e conheça o que realmente importa na
vida; ter saúde, ter um trabalho digno, ter alimentação, amar, se divertir,
aprender e compartilhar… Nenhum bem material atravessa o portal da morte,
chegamos sozinhos e partimos sozinhos, e entre o chegar e o partir tudo fica no
mundo material…
–
Realmente, e eu tão preocupada com um par de sapatos, que coisa boba… Caso eu
volte desse coma, mudarei por completo o meu modo de vida; quero morar perto do
mar, darei mais valor ao ser do que ao ter… Espero merecer uma nova chance de
viver plenamente…
–
Tomara que você não se esqueça dessa nossa conversa…
Acordei
sozinha no quarto do hospital, as primeiras visitas foram de algumas amigas, me
emocionei; elas fizeram uma vaquinha e compraram os tão sonhados sapatos, e ao
me presentear desejaram uma rápida recuperação.
Confesso
que nunca usei os sapatos de couro de jacaré, agora moro numa vila de
pescadores, numa cabana frente ao mar, continuo ganhando o meu pão de cada dia
como manicure, atendo em minha casa… A vida é bela, e eu sou feliz; o que
aconteceu no hospital mudou a minha vida para sempre, acredito que tudo
realmente aconteceu para o meu bem e que a vida continua para além da
imaginação.
Gastão Ferreira/2021
Gastão Ferreira começou a publicar seus textos aos 13 anos. Reconhecido por suas crônicas e poesias premiadas, suas peças de teatro alcançaram grandes públicos. Seus textos e obras estão disponíveis online, reunidos neste blog para que todos possam desfrutar de sua vasta e premiada produção.