A quarentena voltou

 

         A
vida está muito complicada, a venda de ovos de páscoa foi cancelada, e só os
coelhos estão felizes com a situação. O pessoal da zona rural, aqueles que só
assistem tevês continuam apavorados; todos de máscaras, e mantendo o distanciamento.

 

         Meu
primo Zé Noinha está passando um tempo aqui no sítio; ele foi raptado por um
sem teto, e conheceu a amarga vida de quem não trabalha para comer. Ficou com o
pedinte por um mês, e aprendeu vários truques; ele sabe fazer carinha de fome,
ficar tristonho, mostrar um olhar pidão, e rosnar ameaçador para quem negar
algumas moedas para comprar pão.

 

         Não
espalhem, mas é tudo enrolação; os sem tetos tem teto, banheiro limpo, água e
luz pagas pelo município, ah sim! Também recebem comida de uma ONG. Essa
história de dinheiro para comprar pão parou de vez, e a nova pedida é dindim
para comprar duas salsichas, uma para cachorro; é fatal, e é nessa hora que o
dogue esperto faz cara de fome…

 

        
Noinha sabe das coisas, só não escapou para a cidade grande porque não sabe em
qual direção ela está situada; diz que sente falta da liberdade de viver com os
mendigos, andar livre pelas ruas da cidade, sem máscara e sem coleira. Namorar
todas as cadelinhas abandonadas pelos becos da vida, comer à hora em que der
fome, assistir de perto as brigas de facas, os porres e as sacanagens que só as
garotas de rua sabem fazer.

 

         Noinha
disse que esse negócio de quarentena é só para quem trabalha no pesado;
lojistas, frentista, pedreiro, ajudante de caminhão de entrega, e outros
assemelhados. Já aqueles sortudos que exigem dos outros “o fique em casa”,
aqueles que têm o salário do mês garantido pelo governo, eles compram tudo por entrega,
e não passam nenhuma necessidade…

 

        
Noinha contou que o direito de ir e vir dos cidadãos de segunda e terceira
classe foi cancelado; agora só quem pode andar na rua após as 22 horas são os
filhos prediletos da Princesa; os drogados, os olheiros de plantão nas
esquinas, os motoboys com suas motos ram tam tam, aquelas que acordam as
crianças, os velhos, sem esquecer os garotos e garotas em busca de um programa
altas horas da madrugada.

 

         Aqui
no sítio a vida é a mesma; plantar, carpir, colher, vender e voltar a plantar,
regar, carpir e vender… Ninguém namora ninguém casa, ninguém nasce… Bares,
bazares, lojas, casas de diversão, clubes; tudo fechado!

 

         Com
estas histórias do Zé Noinha, nós os cachorros de sítio estamos doidos para
fugir e conhecer a louca vida de uma cidade grande… Que a Princesa aguarde
para breve a nossa visita.

 

 

Omisso, um cão rural.

 

Gastão Ferreira/2021

        

        

        

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