A passagem
Dona
Melina acreditava que a morte era a porta de entrada para outra vida; uma vida
sem fome, sem dor, sem sofrimento. Era a mais velha entre três irmãs, e desde
menina trabalhava como gente grande; órfã de pai e mãe foi o porto seguro das duas
irmãs mais novas.
Mocinha
apaixonou-se pelo violeiro Adriel, casou e sustentou o cantante o resto da vida;
fez faxina, lavou roupas para fora, vendeu bolos e doces; a duras penas
conseguiu educar os dois filhos, um guri e uma guria.
Comeu
o pão que o diabo amassou, e sem geléia ou margarina; o traste do Adriel
cantava em bares noturnos, casas de tolerância, eventos rurais… Melina
cuidava da família e carregava a sua pesada cruz…
Estava
com mais de quarenta anos quando ela chegou, chegou sem avisar; Melina estendia
roupas no varal, uma dor aguda no peito, uma tontura, um desmaio… Abriu os
olhos e se viu caída no chão; – “Uai, acho que morri!”, pensou.
Era
uma tarde de outono, agora sem o peso do corpo físico Melina olhava deslumbrada
a festival de cores, a beleza dos pássaros, o esplendor do céu azul, o suave
perfume das flores do seu quintal; -“Vivi num paraíso e não sabia, e nunca
soube aproveitar…”
Uma
leve dormência, Melina cochilou; despertou e o seu corpo havia desaparecido…
O netinho Eduardo de cinco anos deu um grito; -“Manhê! A vovó não morreu, ela
está aqui no quintal…”
Era
o que faltava! Agora virou um fantasma, uma visagem; espiou para fora do pátio
e algumas mulheres lhe acenaram, foi até o portão… Moças perfumadas, estilosas,
alegres, um tanto alteradas pela bebida alcoólica; – “Que fazem frente a minha
casa?”, perguntou a defunta Melina.
–
Somos amigas de Adriel, e estamos aguardando a saída dele para o arrasta pé
noturno…
Então
era isso! Adriel cercado de pomba-giras, muito sexo, bebidas, cantorias, e ela
se matando para por comida na mesa… E não aparecia um anjo para lhe indicar o
caminho do Paraíso. Melhor acompanhar as moças e o safado do Adriel, e ver o
que acontece…
No
baile de viola tudo era alegria, muita cachaça, cerveja, risos, alegria…
Adriel nem parecia um viúvo fresco, tocava a sua viola e paquerava
discretamente a mulherada. Deu uma pausa à viola e tirou Dita Pereba para
dançar…
Dita
Pereba, comadre de Melina, metida a cartomante, e que falava com gente morta? A
própria! E quem diria a comadre arrastando uma asinha para o compadre… Dita
encostou o rosto no ombro de Adriel; – “Agora poderemos revelar ao mundo o
nosso amor.”, murmurou Adriel.
–
“Não enquanto eu estiver morta!”, falou Melina através de Dita Pereba.
–
“Melina?”
–
“Salafrário, cafajeste, trate inútil… Vou pegar no teu pé para sempre.”
Adriel
deu um grito, “Melina está aqui”, e caiu duro no salão, mortinho da silva…
Melina espiou o cadáver, deu um sorriso, e foi em direção a saída do salão de
baile, atravessou a porta… Havia um rio, um barco de brancas velas, ela tomou
o seu lugar na embarcação…
O
barco saiu do canal, chegou ao mar, e foi navegando nas águas da eternidade,
Melina pensou; – “Estou voltando feliz para a minha casa no espaço…”
Gastão Ferreira/2021
Gastão Ferreira começou a publicar seus textos aos 13 anos. Reconhecido por suas crônicas e poesias premiadas, suas peças de teatro alcançaram grandes públicos. Seus textos e obras estão disponíveis online, reunidos neste blog para que todos possam desfrutar de sua vasta e premiada produção.