Na véspera de Finados

 

         Contam
as lendas urbanas que antigamente as pessoas não eram obrigadas a usarem
máscaras, e as poucas que as

utilizavam eram assaltantes,
bandoleiros, o Zorro e um ou outro super-herói. Zé Ruela não fugia a regra, ele
mantinha uma identidade secreta, aliás, achava que ninguém sabia quem ele era;
a sua identidade secreta era igual a do Clark Kent, que bastava tirar os óculos
e se transformava no super-homem um completo desconhecido, no caso do Zé era só
colocar o lenço e passava à ser  um
anônimo.

 

        
Ruela era um lalau, um ladrãozinho mequetrefe, um cheirador de cola de
sapateiro, um Zé Ninguém, quando colocava um pano preto no rosto se armava de
um canivete, e tentava assaltar velhos e senhoras da melhor idade, se achava
poderoso e invencível.

 

         Naquela
véspera do Dia de Finados, o Zé Ruela se deu mal, abordou Dona Ditinha Gambá e
levou uma grande surra de guarda-chuva, a mulher abriu a maior gritaria e o
pessoal do pega-pra-capar correu atrás do meliante que se escondeu num antigo
prédio quase abandonado.

 

         A
tentativa de assalto ocorreu à tardinha, mas a busca pelo salafrário adentrou a
noite; uma garoa fina, uma branca neblina escondeu a cidade, o dia dos mortos
chegando, e Zé Ruela adormeceu no velho casarão…

        

         Acordou
com o soar do relógio da Matriz anunciando a hora maior; meia-noite… Mal
abriu os olhos e centenas de lampiões se acenderam no salão; o salão estava
lotado… Zé Ruela gelou, entre as pessoas que apinhavam o salão reconheceu seu
tio Pedro Soldado e seu avô Maneco Saci, ambos mortos e enterrados no cemitério
da cidade, há um bom tempo.

 

         Maneco
Saci perdeu uma perna, naquele tempo ainda não existiam próteses, usou muleta o
resto da vida, ficava pulando num pé só, eis o porquê do apelido Saci, Pedro
Soldado morreu de cirrose, mas foi um bom soldado, e não gostava de gente
safada, também notou a presença do sobrinho tranqueira:

 

        
O que está fazendo aqui, imundice? Vergonha da família, pensa que não o
reconheci, acha que este lencinho sujo te torna invisível?

 

        
Calma, tio Pedro! Não é o que o senhor está pensando…

 

        
A minha vontade é te meter o cacete, seu bostinha! Como tem a coragem de atrapalhar
a reunião dos mortos?

 

        
Foi sem querer, tio! Eu nem imaginava que os defuntos se reunissem…

 

        
Pois nos reunimos sim, e sempre a véspera de nosso dia maior, e sempre no salão
deste que foi o maior e mais famoso hotel da cidade… O Dia de Finados…  É daqui que saímos para visitar os parentes,
os amigos, os desafetos, as ex-namoradas; alguns passam o dia no cemitério
esperando uma oração, uma lágrima, um soluço…

 

        
Caramba!

 

        
Essa é a primeira vez que um vivo assiste a nossa reunião anual… Creio que
vai sobrar para você, sobrinho! Vamos saber o que o seu avô pensa disso…

 

         Maneco
Saci, apoiado em sua muleta, e rodeado pelos defuntos foi claro; – Ninguém
chamou o Zé Ruela aqui! Veio porque quis… Daqui só sai mortinho da silva.

 

        
Não faça isso, vovô! Sou muito jovem para morrer…

 

        
Ah, ah… Mas não se acha jovem para roubar, para atrapalhar a vida alheia, não
quer ser nada na vida, o melhor é cancelar o seu CPF…

 

        
Não! Não! Eu posso mudar. Quero uma chance para mudar…

 

         Nesse
momento os lampiões se apagaram e uma voz avisou; – Preparem-se para sair, o
coveiro já abriu a porta do cemitério… Um bom passeio a todos, divirtam-se, e
voltem antes da meia-noite.

 

        
Ruela acordou com o sol batendo na janela; – Que pesadelo! Nunca mais entro
neste velho casarão… Ainda bem que foi apenas um sonho bobo, muito bobo…

 

        
Ruela sentou no assoalho, seu corpo todo doía, no ar um cheiro de morte, uma
angústia, uma tristeza, e bem ao seu lado uma muleta, uma velha muleta, a
muleta de seu avô Maneco Saci…

 

Gastão Ferreira/2020

 

          

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