A fera

 

         Era
uma hora da manhã quando Perdido, o cachorro de madrinha Maria Fininha, latiu
desesperado frente a nossa casa; naquela época não havia luz elétrica na
cidade, e minha mãe acendeu um lampião a querosene: – “Zequinha, meu filho, vá
espiar o que aconteceu com a sua dinda…”

 

        
“Mãe, da outra vez em que Perdido nos chamou, uma onça invadiu o galinheiro da
dinda Fininha, por que não pede para o pai ver o que aconteceu?”

 

        
“Teu pai e teu tio Anselmo, que veio nos visitar, foram espiar os cercos de
tainhas no lagamar, só vão voltar na madrugada; deixa de ser medroso, guri!”

 

         Eu
acabara de completar treze anos, um pré-adolescente magrelo, um tanto tímido,
um tanto medroso; era noite de lua cheia, alguns pássaros noturnos voavam
silenciosos sobre a mata nativa que cercava a nossa rua, nossas casas eram as
últimas antes de começar a floresta.

 

         Perdido
estava em pânico, e nem sequer balançou o rabo para me receber; ele corria uns
dez metros, e depois voltava tremendo, o cachorro se mostrava nitidamente
apavorado; algo de muito grave aconteceu com madrinha Maria Fininha… Coitada!
Com seus 135 quilos tinha dificuldade de locomoção, era lerda feita uma lesma.

 

         Olha
ela ali caída no chão! Olhos abertos, respiração ruidosa; – “É você Zequinha
Guaiamu? Graças ao Bom Jesus, uma alma bendita vem me ajudar nesta hora de
aflição…”

 

         Eu
odiava a alcunha de Guaiamu, o apelido infeliz foi me dado quando um caranguejo
guaiamu quase me capou… Coisa de aprendiz de pescador! Passei a maior
vergonha, e o povo, a gentalha, os parentes me brindaram com esse apelido
vergonhoso; – “Calma madrinha, não se mexa… Está sentindo alguma dor? Quer
que eu chame a mamãe?”

 

        
“Nada de incomodar a comadre Dirce Gambá, só me ajuda a levantar; com estes
quilinhos a mais tudo fica difícil…”

 

        
“O que aconteceu, dinda? Parece que ocorreu uma grande briga aqui na cozinha, e
Perdido estava aterrorizado…”

 

         -“Nem
te conto, Zequinha Guaiamu! Uma besta fera invadiu a casa…”

 

        
“Uma besta fera? Um lobisomem, madrinha?”

 

        
“O próprio! Achei que a fera havia desaparecido para sempre, pois não é que ela
voltou…”

 

        
“A senhora conhece a besta fera, dinda?”

 

        
“Desde mocinha! Eu era linda, esbelta, uma graça, meu apelido era Dita
Sílfide…”

 

        
“Mas o seu nome não é Maria?”

 

        
“Maria Benedita Alves Ribeiro, aquela que já foi a bela Dita Sílfide, a paixão
secreta de um lobisomem, e hoje não passa de Maria Fininha, com exatos 135
quilos e duzentos gramas de gordura.”

 

        
“Caramba, madrinha! A senhora foi a musa de um lobisomem, quem diria…”

 

        
“Tenho saudade daquele tempo; mocinha boba, todas as noites de lua cheia ficava
trancada no meu quarto, e a besta rodeando a nossa casa, aranhando as paredes,
uivando feito cachorro no cio, querendo comer na minha mão…”

 

        
“E a senhora se cagando de medo, dinda?”

 

        
“Nem tanto! Qual donzela não gosta de uma paquera?”

 

        
“E como foi que o romance acabou?”

 

        
“Papai encomendou algumas balas de prata, contou ao povo no boteco do Seu
Onofre Pinguim, provavelmente a notícia chegou aos ouvidos do lobisomem e ele
desapareceu.”

 

        
“Nossa! Salva pelas balas de prata…”

 

        
“Salva, mas frustrada… Fiquei ansiosa, me descontrolei na alimentação, e me
transformei nessa baleia ambulante; de Sílfide à Fininha, eis o resumo de minha
triste história.”

 

        
“Mas, e o ataque de hoje, como a senhora sabe que é a mesma besta fera do
passado?”

 

        
“Os olhos, o olhar, meu afilhado! Jamais esqueci o brilho daqueles olhos
negros… Mesmo assim, hoje quando ele se jogou sobre mim, quando tentou me beijar
em vez de me morder, consegui quebrar uma garrafa de vidro na testa da fera.”

 

        
“A senhora foi muito corajosa, dinda! Agora é só ficar esperto e ver quem vai
aparecer com um ferimento na testa, e bingo! Vamos desvendar a identidade
secreta do lobisomem…”

 

        
“Conto com você, meu afilhado… Fique ligado! E não comente para ninguém o que
se passou aqui em casa…”

 

         Voltei
para minha casa, papai estava preocupado, tio Anselmo caiu um tombo, ferimento
feio, o moço se desacostumara de andar no mato, já faz mais de dez anos que
mora na cidade grande; papai o deixou na cabana da mata, e veio buscar os
curativos…

 

Acompanhei
papai, realmente tio Anselmo tinha um físico invejável, puro músculos, barriga
tanquinho, saradão… Com um corte feio na testa; olhou-me com aqueles olhos
negros, olhos brilhantes cheios de amor, eu sabia que era o seu xodó, seu único
sobrinho, sangue do seu sangue, ele me abraçou e disse; – “Meu sobrinho, meu
herdeiro, que bom que veio ficar com o seu tio.”

 

         Meu
coração disparou; olho brilhante, ferimento na testa, raramente vem nos
visitar, nunca se hospeda em nossa casa na cidade, prefere ficar na cabana da
mata, papai é muito apegado com o meu tio, e eu também; e agora, como fica?
Será ele a besta, a fera, o lobisomem apaixonado por Maria Fininha? Aí, tem!

 

Mas, essa é outra história.

 

Gastão Ferreira/2020

        

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