Raul, o lobisomem

 

         O
Quilombo do Morro Seco foi na época do Império um dos esconderijos mais seguro
para negros fujões; situado na zona rural do município de Iguape, no litoral
paulista, a beleza de sua paisagem rural sempre chamou a atenção.

 

         O
Porto Grande de Iguape foi famoso em seu tempo, considerado o segundo maior
porto negreiro do Brasil, milhares de escravos por ali passaram a caminho das
plantações do sul do país.

 

         Da
África as guerras tribais forneciam os cativos, em vez de matar os prisioneiros
os reis africanos descobriram que vendê-los era muito mais lucrativo, e assim
começaram a dizimar tribo após tribo.

 

         As
guerras tribais envolviam as grandes famílias da realeza africana, era raro um
pé rapado ser feito cativo, a preferência sempre foi pelas princesas,
príncipes, feiticeiros, a elite da tribo devastada.

 

         Os
pais de Raul não fugiram a regra; a mãe Heliodora uma princesa, e o pai Jancal
era filho de um afamado feiticeiro. Conheceram-se na fazenda do coronel
Empédocles Rodrigues, o famigerado… Foi amor a primeira vista.

 

         Heliodora
era a menina encarregada de servir a sopa na casa grande, Maria Antonia servia
as carnes, Izildinha Benedita os vegetais, Equina Regina a sobremesa… Eram
doze jovens cativas só na sala de jantar.

 

         Quando
o famigerado coronel Empédocles tentou separar o jovem casal, Jancal e
Heliodora fugiram e se acoitaram no quilombo do Morro Seco, nem os guardas da
corte e os soldados de milícia tinham coragem de adentrar aquelas terras.

 

         Local
de mata fechada, vales e altas montanhas, morada das onças pardas, cobras
venenosas, lugar onde os filhos de Tupã viviam em segurança; Jancal foi
recebido com o devido respeito à um legítimo herdeiro de feiticeiro africano.

 

         Jancal
cuidava da saúde física e espiritual dos quilombolas, também tratava das
doenças dos animais domésticos; dois anos depois de sua chegada ao Morro Seco,
Raul nasceu, e o menino tinha a marca da besta, o sinal que informava ser a
criança a reencarnação de um feiticeiro, ou de um lobisomem…

 

         Jancal
previu que Raul seria a sua continuação como curandeiro, mas Heliodora sabia
que o menino era um legítimo lobisomem, herdara a mesma marca com a qual o rei,
pai de Heliodora, também nascera… Um lobisomem de Sangue Real era algo
inusitado em terras brasileiras.

 

         Raul
aprendeu com facilidade as mandingas de seu pai; era na aparência um legítimo
príncipe, herdeiro da nobreza e realeza africana, foi um menino feliz, um
adolescente sonhador, um lobisomem feroz, defensor das terras do Morro Seco
contra a invasão dos senhores de engenhos.

 

         Centenas
de lendas urbanas correm a respeito de Raul, sua história ainda faz parte da
memória caiçara; foi ele quem contaminou os irmãos Felipe e Anselmo com a sina
da besta.

 

         Raul
casou jovem com Elvira Gambá, a morena mais bela do quilombo, uma mistura de
cabocla com índia tupi-guarani, e deram o nome de Dirce Gambá à primeira filha,
uma linda menina de cor trigueira e lisos cabelos negros vindos da herança
indígena de Elvira Gambá.

 

         Quando
os adolescentes Felipe e Anselmo foram confundidos com invasores, e o lobisomem
os atacou, os garotos foram salvos por Dirce Gambá, a filha do feiticeiro Raul.

 

         A
menina Dirce conhecia Felipe, e arrastava uma asinha para o lado do guri, ela
passava horas as escondidas assistindo as aventuras dos dois irmãos, e graças a
sua ação fulminante, a de encarar a besta fera, os irmãos não foram trucidados,
e sim contaminados…

 

         Alguns
anos se passaram, Dirce casou com Felipe, e Felipe aprendeu com o sogro Raul a
se comportar como um valente e nobre lobisomem; Dirce Gambá estudou as artes
mágicas dos xamãs da tribo de sua mãe, era uma filha da floresta, herdeira dos
encantos das Iaras dos lagos, de Jacy a prateada lua, era ela a moça que
encantava Curupira e adorava Tupã.

 

         Da
união da feiticeira Dirce com o mateiro pescador Felipe, nasceu José Gambá, que
ficou conhecido como Zequinha Guaiamu, um dos grandes contadores de história do
Vale do Ribeira… Mas, estamos entrando em outra história.

 

 

Gastão Ferreira/2020

 

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