Heliovaldo partiu

 

         Naquela
cidade nunca existiu alguém igual ao coronel Heliovaldo Ramos Júnior; desde a
mais tenra idade ele mostrou ao que veio, e ainda bebê fez cocô, de propósito,
no colo de madame Maria Luzinete de Oliveira Andrade, Dona Dedê para os
íntimos. O problema não foi o cocô e sim a perda do vestido, e a vergonha
passada por madame no sarau literário, pois só notou a cagada na hora em que
subiu ao palco para declamar uma poesia frente a fina flor da elite em flor;
Dona Dedê morreu odiando o Júnior.

 

         Exímio
no manejo do chicote, o guri praticava diariamente no lombo dos escravos da
casa; aos doze anos sonhava em ser dentista, nesse período deixou banguela
muitos cativos, a torquês com que arrancava os dentes dos pobres pacientes
desapareceu misteriosamente e com ela o amor a futura profissão.

 

          Heliovaldo cresceu, casou, foi pai de duas
meninas com a esposa principal e pai de dezenas de bastardinhos com a ralé da
freguesia; o senhor vigário batizou as escondidas a criançada, e perdoou as puladas
de cerca do coronel, um homem bom, no dizer do padre, e o carregador principal
do andor do santo protetor nas procissões.

 

         Da
longa lista das maldades, nenhuma o coronel deixou de praticar; politicagem,
extorsão, falcatruas, mentiras, roubos, assassinatos de reputação e corpos,
rapinagem das verbas públicas… Nada escapou da ganância de Heliovado Júnior.

 

         O
homem foi envenenado por Dirciléia Cambixo, uma rapariga da zona rural que
prestava serviço na zona da cidade com o nome de Callandra Morena; depois do
envenenamento, muito bem pago pelos desafetos de Heliovaldo, Callandra
desapareceu misteriosamente, e sumiu do mapa…

 

         O
acompanhamento fúnebre foi espetacular; gente chorando, gente sorrindo… O
senhor pároco fez as últimas honras ao defunto, e num momento de puro êxtase
afirmou que o amado coronel Heliovaldo Ramos Júnior estava nos braços do Pai
Eterno, curtindo o paraíso que fez por merecer.

 

         O
espírito de Heliovaldo acompanhou toda a suntuosa cerimônia, gostou da parte em
que o padre disse estar ele nos braços do Pai Eterno… Reparou que um anjo de
mármore o encarava com cara de nuvem, não gostou; – “Você aí, oh de asas! Tá
esperando o quê para me levar para o céu?”

 

        
“Fique calmo, Heliovaldo! O que é teu está a caminho… Espia quem te aguarda
ali ao lado do teu túmulo…”, disse o anjo.

 

        
“Vejo dois olhos vermelhos em meio à escuridão… Opa! Quem é essa figura
horrível?”

 

        
“Teu amiguinho e companheiro nas ruindades da vida, está ali para te levar para
a tua nova casa…”

 

        
“Então eu tenho uma nova casa, espero que seja tão luxuosa quanto a que estou
deixando aqui…”

 

        
“Oh, muito mais… Lá estão todas as pessoas que você mandou matar, açoitar,
apunhalar, espancar, queimar, e todas na tua espera para iniciar o baile…”

 

        
“Que baile, oh de asas?”

 

        
“O baile do fogo do inferno, e este aí ao lado é o teu parceiro; boa viagem!”,
falou o anjo.

 

        
“Ah, eu não vou…”

 

        
“Vai sim!”, falou o demônio

 

        
“Nem morto…”

 

        
“Olha a garfada! Vamos lá.”

 

Gastão Ferreira/2020

        

 

 

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