Era
uma casa antiga, um casarão com eiras, beiras e tribeiras, foi construída por
mãos escravas há mais de duzentos anos; o coronel Aristóbulo Ferreira Lins, o
perverso, foi o seu primeiro proprietário.

 

         Aristóbulo
casou-se com Maria Hemenergilda Freitas de Bastos Paranhos e Silva, sinhá Gilda
para os cativos e demais agregados da família.

 

         Sinhá
Gilda era uma caiçara da gema; herdeira do sangue português, e da cor trigueira
dos índios guaranis. De uma família tradicional, sua árvore genealógica tinha
raízes na fundação da freguesia; piratas, navios negreiros, escravagistas,
posseiros, ladrão de gado, mandatários e politiqueiros, todos juntos e
misturados formavam a sua herança ancestral.

 

         Extremamente
religiosa, jamais perdeu a missa das sete da manhã, possuía a convicção de que
seu lugar no céu estava reservado com honra e glória; padre Simião Barbosa
afirmava que sinhá, por sua alma caridosa, já fizera por merecer o paraíso.

 

         Esposa
exemplar, sabia se fazer respeitada pelos subalternos, as vezes exagerava no
cumprimento do dever. Cegara de um olho a escrava Maria Benedita; a lambisgoia
ousara lançar uns olhares indecentes ao mancebo Agenor, sobrinho de sinhá
Gilda. O menino Bizú roubou alguns biscoitos do pote que estava na cozinha;
atrevido! Pagou com a vida, o abusado.

 

         Muito
religiosa jamais permitiu que as safadezas do coronel Aristóbulo se
concretizassem; nenhum bastardo nasceu em sua casa, todos os fetos foram
mortos, e seus corpos enterrados no porão.

 

         Sua
crueldade entre os escravos era notória, muitos cativos preferiam a morte a
trabalharem na sua casa da cidade; nas senzalas da freguesia seu nome era
murmurado com horror e muita suplica eram dirigidas aos orixás pedindo à sua
intercessão para por um fim a tanta maldade.

 

         Naquela
tarde quando sinhá Gilda esbofeteou Dita Mazú, e tentou esfaquear o menino Zé
Brasino, a escrava Maria Benedita a degolou; cortou a sua garganta com um golpe
certeiro e depois tirou a própria vida…

 

         Maria
Hemenergilda Freitas de Bastos Paranhos e Silva olhou o seu corpo caído no chão
da cozinha, ao lado outro corpo, o da escrava Maria Benedita… Apavorada notou
que todos os cativos mortos ao seu mando estavam reunidos ali naquele espaço,
alguns armados de afiados punhais, outros com chicotes, ferro em brasa…
Sentiu a primeira chibatada, e correu e se trancou no sótão.

 

         Nas
vezes em que tentou sair do sótão, sempre apanhava; eram tapas no rosto,
queimadura de ferro em brasa, chicotada que dilaceravam suas carnes. Onde
estava o coronel Aristóbulo que não a socorria? Teve uma noite em que
escancarou a janela do sótão e viu o coronel, o safado estava de braços dado
com Antonieta Trigo Oliveira; salafrário! Traidor…

 

         O
tempo passou, o mundo mudou, coisas aconteceram, o casarão dos Lins mudou de dono
muitas vezes; a fama de assombrado assustava os moradores. Uma mulher de vestes
antigas era vista nos corredores, seus gritos despertavam as crianças, seus
soluços perturbavam os velhos, e o casarão trocava novamente de proprietário.

 

         Muitas
pessoas afirmam que depois da meia-noite uma mulher com as roupas
ensanguentadas abre as portinholas do sótão do casarão e grita por socorro; é
sinhá Gilda que ainda não entendeu que há muito tempo morreu, e que o céu não a
recebeu de braços abertos como afirmava o padre Simião…

 

         Tia
Mathilde é a nova proprietária do casarão, ela é vidente, vê coisas que estão
além de nossa visão comum; na reforma do velho solar descobriram que existe uma
porta que dá para o sótão da casa, Tia Tilde mandou reabrir o sótão, trocar o
madeirame do telhado, renovar a pintura antiga.

 

         Na
primeira noite após a mudança para o prédio reformado, tia Mathilde não
conseguiu pegar no sono; os passos de muitos fantasmas eram ouvidos no
corredor, tia Tilde foi espiar, e viu sinhá Gilda enfrentando seus desafetos…
Sinhá ao notar a presença de tia Mathilde correu ao seu encontro, e desesperada
pediu o seu auxílio, mas essa é outra história.

 

 

Gastão Ferreira/2020