Um lobisomem no frio

 

         Naquele ano o inverno mostrou-se rigoroso, há muito tempo
que a neve não coloria totalmente de branco o telhado das casas; no velho
casarão a lareira permanecia acesa dia e noite. Marciléia acordou assustada com
o barulho de uma janela batendo ao sabor do vento; – “Provavelmente a jovem e
tonta escrava, encarregada de fechar portas e vidraças, de avivar o fogo de
hora em hora, de apagar os lampiões, esqueceu de trancar uma janela. Nada que
umas boas chibatadas não resolvam.”

 

         Marciléia desceu para o piso inferior, realmente uma janela
estava escancarada, e frente à lareira um belo e imenso cão negro ressonava;
ela se quedou admirada com a beleza do animal, mas o que a deixou pasma foi a
transformação que ocorreu bem a sua frente. As formas do cachorro se alteravam
e numa metamorfose fantástica, ele se transformou num lindo jovem; corpo
perfeito, atlético, musculoso, em nada parecido com o encanecido coronel
Ariovaldo, marido da adolescente Marciléia.

 

         A esposa do coronel Ariovaldo estava só na casa senhoril,
apenas a menina cativa, Benedita Maria das Dores, lhe fazia companhia, o esposo
e o restante dos escravos estavam no sitio salgando carnes para o inverno.
Marciléia se condoeu do rapaz, na verdade não entendia como um homem nu podia
ser um cão, a peninha foi tanta que o levou para os seus aposentos íntimos, deu
uma roupa do coronel para cobrir a sua nudez, e conversa vai, conversa vem, e
algo mais aconteceu…

 

         Foi assim que Marciléia conheceu e se apaixonou por Maílson,
o lobisomem; toda a vez que o coronel se ausentava, o rapaz aparecia no
casarão, era Benedita Maria das Dores quem o avisava, assim foi combinado entre
ela e a sinhá, e se a escrava abrisse o bico, o tronco e o pelourinho se fariam
presente na sua vida miserável.

 

         Marciléia vivia feliz, de bem com a vida, sempre risonha,
engravidou e vieram gêmeos; filhos reconhecidos pelo ciumento coronel como
sangue do seu sangue, mas que eram a cara do pai, o matuto Maílson, de quem o
coronel nem sabia da existência.

 

         Um grande e negro cão começou a matar os animais do sítio do
coronel. Foi assim, deste modo, que o coronel perdeu a vida; estraçalhado por
uma fera. Marciléia contratou o pequeno sitiante Maílson para enfrentar a besta
assassina, trabalho que ele levou a cabo; o povo da zona rural ficou feliz,
poderiam dormir tranquilos, e quando Maílson se declarou apaixonado por
Marciléia, todos entenderam que na verdade ele merecia a linda viúva do coronel
Ariovaldo.

 

         Lobisomem demora a envelhecer, Maílson permaneceu jovem por
décadas, Marciléia também não demonstrava a idade, com o passar dos anos
deixaram a casa senhoril para os filhos e foram viajar conhecer o mundo, provar
carnes mais macias, na verdade seguiam a rota do inverno, adoravam o frio.

 

         Belos e ricos, por onde passavam faziam amigos, grandes
festas, e nas festas sempre alguém desaparecia para sempre; ah, o sangue jovem!
Cheio de energia, o elixir da longa vida. Nada como uma boa taça para esquentar
as noites frias frente a uma lareira.

 

 

Gastão Ferreira/2020

        

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