Naquela época se levava muito à sério a quaresma, nada de piadinhas idiotas, olhares marotos, piscadinhas indiscretas indicando namoro escondido. Na vila todas as casas possuíam enormes terrenos, pois cada habitação tinha sua própria horta, seu chiqueiro, sua plantação de mandioca, abóbora, melancia, árvores frutíferas, e criação de galinhas…
Dona Ditinha Guaiamu, aquela que na flor da idade deu um mau passo, e ficou marcada por muitos anos era agora a beata responsável por manter a capelinha em ordem… O mau passo que escangalhou com a reputação da mocinha foi um beijo roubado por um pirata… E, o rebuliço foi assim…
A população permanecia reunida frente à capelinha enquanto os piratas armados com mortíferos bacamartes faziam a limpa nas casas… Todos eles já estavam nos barcos para voltarem ao navio quando o filho do capitão pirata desceu do bote, e num salto agarrou a donzela Benedicta Prado Nunes, e tascou um longo beijo em sua boca e depois simplesmente voltou ao escaler…
Todos sabiam que um beijo podia engravidar uma donzela tolinha; Benedicta passou a ser hostilizada e apontada como uma devassa, ela passava muitas horas do dia no mangue catando guaiamu, e foi assim que surgiu o apelido Ditinha Guaiamu…
O tempo passou Ditinha não engravidou, e agora era a beata responsável pela capelinha da vila… Quaresma, tempo de muitas rezas… Ditinha reunia as donzelas para o terço das dezoito horas, ai de quem faltasse!
Marthinha Serelepe não se conformava com tantas rezas, tantas proibições descabidas, e durante o terço diário ficava bem nos fundos da capela imitando passinhos de dança… As outras mocinhas ficavam horrorizadas com tal comportamento; uma donzela que prestasse devia zelar por sua donzelice…
Foi então que algo assustador aconteceu… Todas as moças ouviram o som de uma viola caiçara… Quem seria o doido que em plena quaresma tocava um instrumento musical? Isso era uma afronta ao Senhor morto, que vergonha!
Um vendaval surgiu do nada, o som de muitas violas se misturava ao vento, a porta da igrejinha foi escancarada, e um moço adentrou o recinto… Ele simplesmente pegou Marthinha Serelepe e saiu dançando com a donzela por dentro da casa santa…
Dançou, dançou, e dançou… Marthinha parecia um fantoche nos braços do mancebo, branca de pavor, quase desmaiando de medo… E num instante parece que o tempo parou, a música cessou, o belo mancebo se transformou em um ser hediondo de chifre e olhos vermelhos, soltou uma satânica gargalhada e desapareceu envolto numa nuvem cheirando a enxofre… Ele era o diabo!
Marthinha ficou marcada como a guria que dançou com o diabo, nenhum mancebo, pescador, pedreiro, plebeu, sitiante plantador de mandioca teve coragem para namorar a bela Martha Eugênia de Alencar, mas a vida sempre nos surpreende e numa noite de lua cheia Marthinha Serelepe conheceu Diogo Mamangava, o lobisomem do Icapara…
Mas isso é outra história.
Gastão Ferreira
Imbé/RS- 2024
Gastão Ferreira começou a publicar seus textos aos 13 anos. Reconhecido por suas crônicas e poesias premiadas, suas peças de teatro alcançaram grandes públicos. Seus textos e obras estão disponíveis online, reunidos neste blog para que todos possam desfrutar de sua vasta e premiada produção.