A raça dos Ferreiras

Hoje que praticamente já atravessei o rio da minha vida, e que escapei por pouco dos muitos ataques dos jacarés da inveja, dos abraços mortais das sucuris da falsidade, das centenas de agressões gratuitas das piranhas sempre famintas na procura de causar dor aos viventes, posso dizer que realmente existe a outra margem nesse rio-mar, sei disso, pois de onde estou diviso o contorno de altas montanhas e estranhos pássaros num céu desconhecido…

Algo que ficou a desejar foi às perguntas nunca feitas durante o início da viagem quando todos estavam a bordo; perguntas bobas, tipo perguntar ao avô o nome avô dele, o que ele fazia, do que gostava, se vovô era namorador, se tinha gente louca na família, gente raptada por disco voador…

Desde guri fui sinônimo de curiosidade, se tem algo de que não me envergonho é de saber perguntar; meus tios paternos ficavam doidos comigo, eles gostavam de inventar histórias e eu dava cada nó na cabeça deles… Já nasci sabendo usar rapidez mental e abuso de silogismo.

Agora que sou o primo mais velho vivo e após milhares de quilômetros rodados sei que meus tios me contavam muitos segredos, na verdade segredos bobos de rapazes criados entre verde campinas, rebanho de ovelhas, galopes de cavalos, sangas cristalinas povoadas de solidão…

Todas essas conversas, perguntas, questionamentos levaram meus tios, por vezes, a me tratarem como adulto… Então nossas conversas estavam em níveis diferentes; tio Osvaldo, o meu tio poeta, e seu generoso olhar por sobre todas as criaturas, falava do seu sonho de viver um grande amor, e de como seria feliz…

E eu via aquele homem abrir a inocência de sua alma às estrelas do céu, as águas, aos açudes, aos rios, aos ventos cortantes do Sul, e eu chorava de emoção; eu tão criança e conhecia aquela dor, aquela saudade, eu não sabia que eu também tinha uma alma de poeta, uma alma peregrina perdida na Terra e que os versos do meu tio ecoavam dentro de mim, a herança de nossa raça ancestral…

Tio Jonas era o mais espiritualizado dos meus tios, conversava com gente morta, não só conversava, mas também via, e me contava das longas conversas com o seu amigo espiritual… Acho (e aqui entra as perguntas nunca feitas) que tio Jonas nunca se interessou por mediunidade, espiritismo, mas foi o responsável por eu pesquisar tanto sobre mediunidade…

Tio João Felipe também tinha vidência e presenciou cada fenômeno de mediunidade física de arrepiar os cabelos; vela acendendo sozinha, gente morta saindo da tumba para estapear desafeto, cachorro de olhos vermelhos rosnando a beira de estradas desertas. Saiu novo da casa paterna, se tornou evangélico, e o tempo passou…

A raça dos Ferreiras adorava ler, vovô Antonio Galvão assinava jornal, (outra pergunta nunca feita; como o jornal chegava na estância do vovô, naquele fim de mundo?) e vovô passou esse amor pelo saber para a filharada e seu Barroso, o meu pai teve êxito em ver essa luz brilhar em todos os seus filhos…

Seu Barroso era um modesto funcionário público, com oito filhos para criar, e mesmo assim assinava o jornal Zero Hora e o Correio do Povo dominical era sagrado, com ele aprendi que se pode trocar um passeio por um bom livro e sair no lucro…

Homem ciumento de seus jornais tinha por que tinha de ser o primeiro a ler; depois passava a página lida para o filho mais velho, e assim acontecia até todos terem lido o calhamaço… Dona Anadir, uma Souza, não foi criada com o hábito da leitura (outra pergunta jamais feita), mas Domingo à tardinha lá estava ela espiando o que sobrou do jornal…

Nossa mãe ficava passada, em cada canto da casa um filho lendo um artigo do jornal; – É a raça dos Ferreiras falando mais alto, dizia.

Com o tempo minhas irmãs já casadas começaram a presentear Dona Anadir com romances espíritas; a velhinha tomou gosto e buscou aprender… Valeu o esforço da raça dos Ferreiras, em sua partida foi fácil encontrar o caminha de volta à casa do Pai.

Interessante que todas as minhas irmãs gostam de ler, emprestam livros entre si e são ciumentas das próprias bibliotecas, já os sobrinhos e sobrinhas lêem por necessidade; os demais primos e primas da raça dos Ferreiras realmente eu não sei (outra pergunta jamais feita), mas se puxaram por seus pais são os que levarão a tocha da leitura para as futuras gerações Ferreira… Nossas origens são remotas e há muito tempo nossos pés conhecem a maciez da lama da Terra; quem me contou? Os livros.

Gastão
Ferreira/2022

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