Dona Belinha estava inconformada com a paradeira e a falta de perspectiva na cidade. Fã do conto infantil “A Bela Adormecida”, queria dormir e um dia acordar num mundo melhor. Tanto procurou que encontrou uma droga que a induziria a dormir por um tempo determinado. Cada pílula era um ano de sono e assim tomou quatro pílulas.
Abriu os olhos e pensou: – Ué! Já se passaram quatro anos? Creio que a tal droga não fez efeito, pois tenho a impressão de uma noite normal de sono. Darei um passeio pela cidade para conferir.
Não foi nada fácil convencer os médicos do hospital da cidade vizinha a liberarem sua alta: – Dona Bela, a senhora ficou quatro anos em coma e não pode sair por aí como se isso seja a coisa mais normal do mundo! O helicóptero ambulância para sua cidade está lotado, terá de aguardar o de horário noturno, o que transporta os bebês recém-nascidos e suas mães.
– Que chique! O transporte agora é feito por helicópteros?
– Sim! Desde que o uso excessivo de ambulâncias há uns dois anos passados esburacou completamente a rodovia estamos utilizando esse meio de transporte.
– Não era mais prático arrumarem a rodovia?
– Com certeza! Mas ninguém sabe onde foi parar a verba que veio para a reforma. Doença é coisa grave e as consultas em sua cidade só eram possíveis com seis meses de espera. Há uns três anos começaram a velar seus mortos em nosso velório municipal, pois o local apropriado em sua cidade ficou apenas em promessas…
– Oh! Meu São da Ilha. Não construíram o velório municipal?
– Muito pelo contrário! Terceirizaram o serviço e como vocês já nascem aqui, consultam aqui, são operados aqui, nada mais prático que serem velados por aqui mesmo.
Naquela noite não foi possível o transporte, estavam em curso o nascimento dos bebês da safra do carnaval e os helicópteros com sua capacidade máxima comprometida. Dona Belinha conseguiu uma vaga pela manhã. Ao sobrevoar o Valo Grande o primeiro susto: – Que é isso? Que belas mansões!
– Quando fechou a barragem e o Valo Grande foi assoreado, uma ONG se apossou das terras, construiu essas belas casas com o dinheiro do pré-sal e hoje a Vila “Mãos Limpas” é o bairro cartão postal da cidade.
– Noto construções ao longo do lagamar junto ao muro da orla marítima! Está parecendo uma favela…
– Ah! A Vila Pidona. Com a chegada de uma grande horda de novos pedintes, o poder público cedeu oficialmente o local que na realidade por usucapião já pertencia aos mendigos e como estão próximos de seu local de trabalho, dos visitantes e bares, nada mais justo que usufruam da bela paisagem. Não incomodam ninguém, pois com a cobrança de pedágio a quem se aventura a desfrutar da orla, tocam sossegadamente a vida.
– Parece que o centro velho está um tanto abandonado? Muitos casarões destelhados.
– Com a implantação definitiva do projeto “Tombar é preci$o, cuidar $ão outro$ quinhento$” e o grande afluxo de capital utilizado para as reformas, os proprietários para receber o benefício começaram a destelhar suas casas e assim ter direito a uma parte desse dinheiro.
– Meu São da Ilha! O centro da cidade está literalmente destruído.
– Sim! Os idealizadores do projeto estão eufóricos. Mato por toda a parte, lixo se acumulando, casas em ruínas, urubus e ratos fazendo a festa, cortes constantes na energia elétrica. Os índios que a senhora está vendo no entorno das praças são os novos moradores…
– Como! Novos Moradores?
– Esqueceu que com o tombamento a cidade deve preservar tudo o que estiver relacionado com a época colonial? Os índios são os remanescentes dessa época e fazem parte da paisagem original.
– Eles venceram! Eles venceram! Conseguiram destruir minha linda cidade… Oh meu São da Ilha! Eu quero dormir… Dormir… Dormir.
– Calma dona Bela! A senhora nem viu tudo…
– Eu pensei em dormir e acordar num lugar maravilhoso, uma cidade limpa, próspera, com belos monumentos…
– A senhora nem viu os novos monumentos. Seguem o padrão do que está na praça principal. Temos o “Manjubete”, o “Eva & Adão” e muitos outros embelezando a cidade e o custo total para a construção de tais obras já ultrapassaram os dez milhões de Reais.
– Em quatro anos e tudo mudou! Afinal quem manda na cidade? Quem venceu a última eleição?
– É verdade! A senhora nem imagina quem é o mandatário. Chega mais perto… É… Bzbzbzbzbz.
– Oh! Meu São da Ilha!… Não… Não… Não.
Gastão Ferreira
Obs. – Esse texto é ficção. Nada a ver com nossa realidade. Qualquer semelhança com o que poderá ocorrer no futuro será mera coincidência.
Gastão Ferreira começou a publicar seus textos aos 13 anos. Reconhecido por suas crônicas e poesias premiadas, suas peças de teatro alcançaram grandes públicos. Seus textos e obras estão disponíveis online, reunidos neste blog para que todos possam desfrutar de sua vasta e premiada produção.