FELIZES!… NEM SEMPRE


FELIZES!… NEM SEMPRE

O feliz para sempre durou exatamente dois meses, sessenta dias de muita cama e mesa. Sim! Mesa… Creio que devo recordar a vocês a minha triste história, não a fábula encantada dos livros infantis, mas a dura realidade de quem foi conhecida como; – A Gata Borralheira!

Quando o navio mercante foi saqueado e papai jogado ao mar por piratas, eu tinha três anos, uma inocente criaturinha vivendo a sombra de uma madrasta, uma má drasta literalmente. Com meu corpinho cheio de hematomas dos beliscões, pontapés e torturas sofridas nas brincadeiras com as enteadas de papai, vivia calada e apavorada.

Com a morte prematura de papai, eu, de herdeira passei a ser a serva, a escrava, a faz tudo. Levantava às seis horas da manhã para preparar o desjejum matinal, que era servido em bandejas de prata, na cama e com direito a repetéco… Lavava, passava, costurava, cuidava da horta, do jardim, do pomar, do cachorro e de três gatos. Também alimentava os cavalos, polia a carruagem, fazia compras na feirinha comunitária, atendia aos constantes saricoticos das duas mocréias, filhas da madrasta e a noite dormia, ou melhor, desmaiava junto às cinzas do borralho ao lado do imenso fogão a lenha, por mim pilotado diariamente… Essa era a minha vida, que daria uma tragédia e acabou virando um conto de fadas.

Conto de Fadas! Na época era tudo de bom que poderia acontecer, mas hoje, passado tantos anos, já não concordo… Minha madrinha, a tal da Boa Fada, foi totalmente ausente quando eu mais necessitava… Onde estava a sacana na hora das surras, dos puxões de cabelos, dos tapas na cara? Seu ombro amigo nunca se fez presente para acalmar meus soluços. Jamais apareceu para dar um conselho, um sorriso, um oi. Bastou saber da festinha no Palácio Real que apareceu do nada, quase me matando de susto, com seus sórdidos planos. Hoje eu sei! Queria fazer parte da realeza e me usou. Usou a única afilhada como isca para ficar famosa.

Sei que muitos não concordam com essa minha maneira de pensar, mas, se a Fada fosse uma boa drinha e não uma má drinha, ela teria conversado com a má drasta, convencido a pilantra a internar-me num ótimo colégio, garantir meu futuro com uma profissão… Não! Era mais fácil fazer alguns truques e jogar o verdadeiro problema para os outros.

Hoje, após anos de analise com um bom psicólogo, consigo entender! Não estava preparada para compartilhar do trono. O príncipe, como todos os príncipes, era apenas um encantado, se achava o máximo… Também! Quem teria coragem de falar cara a cara que ele não passava de um medíocre filinho de papai, um pedófilo apaixonado pelo sapatinho de cristal da Cinderela.

Fui feliz por míseros sessenta dias. Acostumada com os restos na casa da madrasta, me empanturrei do bom e do melhor. Doces, tortas, sorvetes, petiscos de primeira qualidade, comida das mais nobres, comidas da mesa Real… Engordei! Bati de frente com a rainha, uma politiqueira mal amada… Contava anedotas sobre a minha pessoa, chamava-me de gorda, orca, tenda de circo e mil outros apelidos com que me difamava, só porque eu estava um pouquinho acima do peso, os quarenta e cinco quilos, alguns meses depois do casamento, eram cento e vinte.

O sapatinho de cristal não mais cabia no pé. Por sessenta noites durou o fetiche… Não tiveram coragem para me expulsarem do castelo. Meu casório foi o casamento do século, comentado em todos os reinos e recantos onde uma donzela abobada sonha com um príncipe encantado.

Fui enviada ao exterior a passeio, a ordem era afundar o navio… Sei por que o capitão, que trabalhou com papai, se apiedou de minha sina e me contou. Colocou-me num bote salva-vida com água e uma fortuna em jóias, me fez jurar pela memória de minha santa mãe, que não conheci, que eu jamais revelaria a tramóia… Cachorro! Repintou o navio, vendeu no mercado pirata e mandou um pombo correio, o e-mail da época, para a rainha comunicando que o navio fora a pique e que a princesa não sobreviveu ao naufrágio.

Casei aos treze anos de idade e o matrimônio durou dois meses, fiquei zanzando pelo castelo por quase dois anos… Então! Cinderela morreu afogada aos quinze anos, se minha memória não falha, esta era a minha idade quando ganhei alforria e encarei a vida frente a frente. Não sei como consegui emagrecer, não me peçam a receita! Voltei aos quarenta e cinco quilos, jovem, rica e burra… Coloquei minha fortuna numa empresa de navegação, fui estudar e aprendi tudo o que sei… Rico e burro não dá para aproveitar a abastança, fiz o certo, hoje sou milionária… Óbvio que troquei de nome! Agora sou loira e nem a fada madrinha me reconheceria.

Escrevi esse rascunho como vingança e também para mostrar as donzelas que a vida é mais que um sapatinho de cristal… Que uma Fada por mais boazinha, não tem poder de mudar o íntimo de ninguém… Que o dinheiro é complemento, não trás a felicidade… Que na vida é necessário sonhar, mas que só de sonho não se vive… Que o estudo nos liberta nos dando conhecimento, pois através do estudo compartilhamos todas as experiências da humanidade e que a força de vontade é tudo do que necessitei para alcançar meus objetivos, eu consegui até emagrecer!

Obs.:- O Príncipe envelheceu, mas continua colecionando sapatinhos e beijando os pés de menininhas sonhadoras… A rainha engordou e colocou outro tipo de coroa na cabeça do rei… O reino está mais pobre, muitos navios da frota real afundaram. Quem me contou estas fofocas foi, o agora meu amigo, o capitão que me salvou, alias meu sócio no negócio de repintar e vender navios no mercado negro.

Gastão Ferreira/Iguape/SP/2011

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