No ano da graça de Nosso Senhor em Janeiro de 1606, o capitão-mor Pedro de Alentejo, por ordem de sua majestade o rei de Portugal e Algarves montou casa por estas cercanias; sua esposa, Emerenciana Elisa de Trás-dos-montes, apelidada pelos nativos de Dona Dondinha detestou o lugarejo; mutucas, muriçocas, mosquito pólvora, moscas varejeiras, tamanduás e tatus perturbavam o sossego da ex-dama da corte. O nobre casal tinha três filhas; as duas mais velhas casaram com abastados filhos de comerciantes locais. A mais jovem apaixonou-se secretamente por Lindauro, um belo e másculo mestiço de índios guaranis, antigos senhores das terras de Pindorama.
Amália de Trás-dos-montes e Alentejo, nhá Belinha, era a formosa filha mais nova e a menina dos olhos do velho capitão-mor, moça prendada e estudiosa falava vários idiomas e por vezes servia de tradutora ao senhor alcaide, pois muitos aventureiros em busca de ouro desciam de bergantins no porto da freguesia, recém inaugurado.
O alcaide Roberval Silva, filho bastardo de um primo pobre do rei, ganhara o posto das mãos de Sua Majestade e mandava e desmandava por toda a capitania hereditária; medroso, tímido, analfabeto, boçal, eram alguns dos muitos cognomes com os quais seus súditos a ele se referiam. Mas o homem nadava em dinheiro e era cativo dos lânguidos olhares de Amália.
Amália sabia que jamais se casaria com Lindauro e aceitou o alcaide Roberval e seu ouro como esposo; o casório foi uma benção para a insipiente freguesia. Nhá Belinha, usou e abusou das posses do marido; financiou orfanato, asilo, casa de loucos. Incentivou a pesca de um pequeno peixe de nome Manjuba, importou três chafarizes da Europa; deitou e rolou, mas nunca esqueceu o atraente Lindauro.
Um tateto foi encontrado sem uma gota de sangue, a cabeça do bode Juvenal nunca foi encontrada, um porco foi achado dilacerado; a plebe apavorada murmurava pelos becos que um lobisomem rondava as cercanias, pois somente em noite de lua cheia é que ocorria a carnificina. A coisa estava ficando feia; o bicho fera correra atrás de uma rapariga, graças aos céus que a menina escapara com suas roupas rasgadas pela besta, nua e ilesa. O alcaide chamou o capitão-mor e ordenou dar caça sem trégua ao bicho lobo; o capitão reuniu a tropa e vasculharam a vila, os montes, os sítios e nada encontraram.
Alguns navios piratas foram avistados nos confins da comarca; o alcaide, o capitão e seus comandados foram espiar e tiveram que pernoitar longe de casa; nessa noite fatídica o lobisomem atacou. Correu e uivou pelas ruas e becos; animais domésticos foram mortos, cães estripados. Todos os lampiões foram apagados, todas as portas e janelas foram trancadas. Somente nhá Belinha enfrentou a fera; os habitantes da vila jamais se esqueceram dos gritos, sussurros, rosnares e ganidos vindos de dentro das trevas; na manhã seguinte nhá Belinha com marcas roxas no alvo pescoço, pequenos arranhões nos braços e um brilho diferente no olhar, explicou aos súditos que a besta-fera foi vencida e que somente ela tinha o poder de afastá-lo da vila.
O lobisomem perturbou a comarca por muitos anos e por muitos anos nhá Belinha o pôs a correr. Pagou um alto preço por sua valentia; manchas roxas pelo corpo, unhadas, vestes rasgadas. Quando perguntada se não tinha medo de enfrentar a fera, dizia; – Sou feliz ajudando o meu povo!
Hoje se sabe que Amália de Trás-dos-montes e Alentejo foi a nossa primeira politiqueira, usou e abusou das crendices do populacho em proveito próprio; depois que Lindauro morreu afogado, tentando salvar o único filho de nhá Belinha, um moleque que não tinha cara de lusitano, o lobisomem não voltou a atacar a vila.
Gastão Ferreira/Iguape/2014
Gastão Ferreira começou a publicar seus textos aos 13 anos. Reconhecido por suas crônicas e poesias premiadas, suas peças de teatro alcançaram grandes públicos. Seus textos e obras estão disponíveis online, reunidos neste blog para que todos possam desfrutar de sua vasta e premiada produção.