O quarto na penumbra. Sou um velho cansado de tudo. O corpo imóvel pedindo repouso… O menino portando um ramalhete de flores silvestres aproxima-se da cama. Seu olhar inocente me fita:- “Quem será?” penso eu.
– Eu sou você! Essas flores foram colhidas naquele dia em que fui visitar vovó Maria Inês, lembra? Noventa e tantos anos já se passaram.
– Vovó Maria Inês! Vovó com seus doces e seus afagos, uma sombra de amor enfeitando minha infância, esse menino doido dizendo que sou eu.
– Valdo! Eu sou você. A tua memória me tornou criança para recordar toda uma vida, a nossa vida. Sou o depósito dos teus sonhos, o menino que vive em ti, a esperança nunca perdida, a chama que te move à parte luminosa do teu longo caminho.
– Menino maluquinho! Não posso negar, é a minha imagem… Meu Deus! Como fui feliz. A casa simples no sitio de meus pais… Meus irmãos, primos, tias, parentes, risos. A mudança para a cidade, os estudos, as lutas, a vontade de vencer, a gana de viver num futuro melhor… As muitas vitórias, os poucos fracassos. Dores de amores, dores de dores, dores sem dores. Um homem e seu mundo, um homem conquistando seu espaço no mundo… Um homem que foi um vencedor. Essa mansão! O cofre camuflado na parede onde guardo parte do meu ouro… Meus filhos sem tempo para uma visita ao pai doente… Minha poderosa família, meus herdeiros… Meu sangue pobre que transformei em nobre… Minha luta.
– Valdo! Tudo isso ficará aqui. Em que parte da jornada me abandonou? Onde ficou o menino que sonhava? Que acreditava em magia e era feliz!O adolescente que queria modificar o mundo?Que amava a natureza e que se encantava com os mistérios da vida?
– Ah! Meu menino. Dessa criança me afastei. Com suas crenças, sua inútil amabilidade era um estorvo ao sucesso profissional. Tornei-me um empresário famoso, a riqueza chegou, esqueci do riacho onde pescava nos dias infantis, dos parentes pobres que só pediam favores, dos amigos perdedores, do nascer do sol, das estrelas, da simplicidade… Tornei-me um nobre, como nobre vivi.
– Valdo, Valdo! Que valia teve o sangue nobre se a tua alma é pobre?Chegastes ao mundo de mãos vazias e de mãos vazias partirás. Repara!… Nesse luxuoso aposento com quadros valiosos nas paredes, quadros cujo valor saciaria a fome de muitos e que servem de enfeites a tua doença terminal, apenas mostram a tua solidão!
– Menino! Esses quadros famosos custaram o suor de meus empregados, foi à paga pelo muito que os ajudei.
– Mentes! Pois sabes das lágrimas que tua extrema avareza causou.
– Criança! O que é meu foi conquistado…
– Nada de material se conquista verdadeiramente, pois tudo fica aqui… Quando nascestes eras uma pedra bruta a ser trabalhada, lapidada, transformada em uma jóia viva, um ser humano buscando a perfeição…
– Criança… Criança! De quem são as sombras que te acompanham?
– São amigos e inimigos que aguardam…
– Aguardam o quê?
– O momento da partida que se aproxima…
– Vou morrer?Assim sozinho! Como um traste velho abandonado…
– É à hora de colher o que semeou… Nem tudo são flores, nem tudo são dores, algum bem foi feito e como informei de mãos vazias todo o homem parte, a fortuna está no coração, o único cofre que nunca será roubado e nele está guardado a compreensão, o amor, a humildade… Esses bens que as traças jamais comerão.
– Ah meu menino! O cansaço me invade, uma doce lassidão… Quero dormir, esquecer essa conversa sem pé nem cabeça… Obedeça-me! Dá-me tua mão.
– Segura minha mão. Agora!… Voltarás a ser o menino e eu serei o teu guardião.
Gastão Ferreira
Gastão Ferreira começou a publicar seus textos aos 13 anos. Reconhecido por suas crônicas e poesias premiadas, suas peças de teatro alcançaram grandes públicos. Seus textos e obras estão disponíveis online, reunidos neste blog para que todos possam desfrutar de sua vasta e premiada produção.