Um mal súbito, um desconforto, uma dor no peito; fui até a cozinha para tomar um
pouco d’água, tudo escuridão… A dor aumentou e respirar ficou difícil…
Desmaiei…
Acordei na madrugada e atravessei a parede em direção aos fundos da casa… Atravessei
a parede? Estranho! Um riacho que eu nem sabia que existia corria mansamente no
final do terreno; muito estranho! Olhei para um barco vazio…
Eu conhecia aquele barco, e não era de hoje… Há oitenta anos um jovem chegou;
corpo perfeito, saudável, cheio de vida e esperança, desceu do barco e o
amarrou à margem do regato.
Mal aportou e ao pisar a terra firme algo bizarro ocorreu; uma névoa o envolveu e
ele era um bebê, com o choque veio o esquecimento e oitenta anos se passaram…
Entrei no barco, e novamente jovem e saudável entendi; mais uma viagem concluída, mais
um fim de semana na Terra, mais experiência de vida para somar a milhares de
vidas…
O barco seguiu a correnteza, o riacho se juntou a um grande rio, e célere buscou
o mar do tempo… Meu barco-vida voltava para a casa ancestral…
Viagem proveitosa sem dores nem amores, sem grandes dissabores praticamente um
passeio… Desta vez só vim observar, pagar algumas dívidas, todas pequenas,
aturar desaforos de gente ciumenta e sem noção; não vim para aparecer, só viver
e me entender definitivamente. Parece que consegui…
Há milhares de anos eu navego neste mar; quando saí das mãos do Criador, tão
inocente naufraguei… Caí, levantei-me e caí milhares de vezes. Conheço o mar
do tempo como a palma da minha mão; quantos planetas já visitei? São muitas as
casas de meu Pai… Fui evoluindo lentamente, só na Terra renasci umas
trezentas vezes, pois a evolução é lenta…
Meu pequeno barco cruzou por lanchas de última geração, alguns iates, e até mesmo
por pranchas de surf… Todos seguindo um rumo; vilas, cidades, mansões e
casebres, e cada local com sua gente, seus costumes e cantorias.
Ao raiar do sol meu barco ancorou entre brancas pedras; muitas aves, animais,
luxuriante vegetação, pensei; – Meu paraíso, minha casa ancestral…
Estavam todos ali; minhas avós, mãe, pai, tios, amigos e familiares com que a vida me
abençoou. Chorei de emoção, e elevei meu pensamento para além daquele céu de
infinito azul e agradeci o merecimento de voltar feliz ao meu lar…
A morte é uma porta, já atravessamos milhares de vezes essa porta. A morte nunca
foi uma inimiga, ela é a amiga que nos devolve ao mundo espiritual, o mundo
verdadeiro… Morrer é voltar para casa, e nada mais.
Gastão Ferreira/2022
Gastão Ferreira começou a publicar seus textos aos 13 anos. Reconhecido por suas crônicas e poesias premiadas, suas peças de teatro alcançaram grandes públicos. Seus textos e obras estão disponíveis online, reunidos neste blog para que todos possam desfrutar de sua vasta e premiada produção.