Naquela noite de lua cheia, véspera do Domingo de Páscoa, um lobisomem faminto rondava a cidade; com a proibição do ir e vir entre as 20 e às 5 horas da manhã, as ruas estavam desertas, somente algumas meninas esqueléticas e usuárias de crack teimavam na inútil procura por clientes inexistentes.
Noite de lua cheia, uivos vindos da montanha, nem os andarilhos, os sem-tetos, os meninos olheiros das drogas, os catadores de papelão, os boys de programa, os meninos do crime, os pula muros, nenhum deles se atrevia a sair da segurança de suas casas.
O lobisomem percorreu alucinado as ruas desertas; as poucas figuras que perambulavam na escuridão eram carne de segunda, algumas portadoras de HIV, outras de Covid, e não serviam para um consumo imediato… Afastou-se da cidade.
A besta corria solitária pela estrada asfaltada, nenhum automóvel cortava a escuridão, atendendo as entregas tardias, motos com escapamento aberto passavam aceleradas causando dores insuportáveis nos sensíveis tímpanos da fera.
Com os ouvidos latejando de dor, o lobisomem deitou no acostamento, um ruído distante chamou a sua atenção. Parecia que um grupo de animais se aproximava; talvez uma matilha de cães, ou raposas… A besta escondeu-se entre a vegetação que margeava a estrada…
Eles vinham felizes, conversavam entre si e lembravam-se de outras páscoas; a alegria das crianças ao descobrirem os ovos de chocolate, a expectativa de verem um furtivo coelhinho na entrega anual dos presentes… Neste ano, um ano diferenciado dos anteriores, pois sem aulas e presas em suas casas a miudagem anda estressadinha, os coelhos fariam a diferença.
Não sobrou nenhum, o lobisomem fez a festa; devorou o grupo inteiro, não sobrou qualquer coelho. Na estrada ficaram esparramados os ovos de chocolate, ovos quebrados e misturados ao sangue dos coelhos, sem possibilidade de aproveitamento… Na cidade as crianças ficaram na espera dos presentes que nunca chegaram.
Foi a primeira vez que um lobisomem atacou e devorou um grupo de Coelhos da Páscoa, foi essa a desculpa que os pais desempregados arrumaram para seus filhotes; as crianças estão apavoradas, e se no Natal a besta fera atacar o Papai Noel? Um Natal sem presentes ninguém merece!
Seu Chico do Mato acordou tarde, ouvidos doloridos, um gosto de chocolate na boca, lembrou vagamente de ter presenciado o ataque de um grande e negro cão à um bando de coelhos, coelhos que traziam ovos de chocolates para as crianças da cidade; não sobrou nenhum para contar a história…
Seu Chico sorriu, que bobagem! Coelhos da Páscoa não existem, e muito menos lobisomens.
Gastão Ferreira/2021
Gastão Ferreira começou a publicar seus textos aos 13 anos. Reconhecido por suas crônicas e poesias premiadas, suas peças de teatro alcançaram grandes públicos. Seus textos e obras estão disponíveis online, reunidos neste blog para que todos possam desfrutar de sua vasta e premiada produção.