A MALA…


A MALA…

Meu nome é Tânia, desde pequena tenho dores na cabeça, enxaqueca disse o doutor. Também ouço vozes, às vezes dentro, às vezes fora de mim. Quando criança elas cantavam para eu dormir. Contavam histórias de tempos em que não vivi. Igual filme colorido havia de tudo, romance, comédia, drama, tragédia… Já fui donzela recatada, pirata, feiticeira, bandida, mal amada, fui filha de rei. Hoje moro numa cidade a beira mar… Quando eu durmo, as vozes me levam para longe e desperto em lugares distantes, distantes do meu lar.

Ontem elas chegaram sorrateiras, me exaltei, meu marido me bateu, sangrou. Meu filho Junior, de três meses, chorou. Fui até seu berço, ele não se calou. Lembro de meu esposo com uma faca na mão, depois as vozes cantaram, cantaram cantigas de ninar e o sono chegou. Acordei ainda agora nessa praia deserta, com essa mala ao lado, a mala que ganhei do Pastor.

Teve uma época, tempo de mocinha em que freqüentei um culto, minha mãe me levou. Foi lá que o Pastor amarrou o Diabo, o Demônio que teimava em me atazanar. Quando mamãe morreu assassinada, eu tive medo, tinha certeza que foi meu Capeta que a matou. “Ele continua amarrado”, disse o Pastor, “quem a trucidou foi um bandido qualquer e que fugiu sem nada levar”. Ganhei uma Bíblia e uma mala. A Bíblia não li e a mala sempre me serve para guardar as coisas que aparecem depois dos longos sonos. Um revólver, algumas facas, um colar, coisas que não sei explicar.

Eu não sou louca, tenho dores na cabeça, vejo vultos, ouço vozes e conto histórias, não as minhas memórias, as das pessoas que finjo que conheci. Da moça que matou o noivo por ciúmes, da mulher traída que encontrou o marido e a outra na sua própria cama e os sufocou, depois jogou gasolina e incendiou a casa, todos pensaram que foi a traída e seu consorte que pereceram. Minhas lembranças vêm e vão! Tem muita coisa escondida nessa minha cabeça dolorida que temo recordar.

Hora de voltar para casa. Hoje conheci um pescador, parece ser boa pessoa, me deu seu endereço, me paquerou… Quer-me de mãos vazias, cheia de amor!Esta mala? Desconheço! Não é minha, nem sei como adivinho que dentro tem um revólver, algumas facas, um colar e a cabeça de um nenê de três meses chamado Junior que não parava de chorar. O pai do bebê foi morto e enterrado no quintal, a mãe enlouquecida cortou a cabeça da criança e ela parou de berrar.

Meu nome agora é Suzana, acabei de chegar. Estava escuro de onde vim… Ouço vozes, elas torcem por mim, dizem que serei feliz, que um pescador me ama e espera por mim… Esta mala não era de Tânia, nem ganhou de um pastor, ela mentiu. A mala foi dada a Beth, a garota que matou a mãe a pauladas. Como sei? As vozes me contaram, elas apagam da memória quem por um breve momento pensou que existiu…

Gastão Ferreira/2011

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