Sem carapuça/Ficção


ANO 2.061 DC OU 50 DB

Escrevo no ano de 50 db (Ano 50 depois de Bete), moro num porão e espero que esse texto encontre leitor num futuro mais risonho. Eis um resumo histórico do que ocorre na cidade que um dia foi conhecida como a Princesa do Litoral. Depois que os abalos sísmicos dos anos 30 db ( Trinta depois de Bete), varreram do mapa a tal Ilha Comprida que foi tragada pelo mar por um tsunami gigante no litoral do Estado de São Paulo, muitas coisas mudaram. Os sobreviventes da catástrofe montaram um acampamento próximo a Fonte do Senhor, ficaram anos a fio aguardando a ajuda federal através do auxilio Bolsa Casa.

Com o passar dos anos foram informados que a totalidade da ajuda Bolsa Casa fora desviado. Os acampados revoltados com o descaso das autoridades deram inicio a “Grande Grilagem”. Esse movimento foi assim denominado para diferenciar da “Média Grilagem” que ocorreu em Três db (2.011 dc) e desmatou uma área conhecida como Porcina. A Grande Grilagem ocupou a totalidade dos morros que cercam a cidade. Uma grande favela subdividida em vários setores para homenagear animais e figuras proeminentes do passado. Favela da Oncinha, da Capivara, do Tamanduá, da Paquinha, da Formiga, do Cocho, do Berne entre tantas outras.

Os favelados além do Vale Casa, Vale Pão, Vale Água, Vale Mobília, Vale Gás, Vale Transporte, Vale Refeição, Vale Cerveja e Vale Maconha exigiram um novo Vale, o Vale Zona. Os candidatos a cargos eletivos eram favoráveis ao novo Vale, mas os poucos eleitores que pagavam impostos eram contra. O motivo da desavença era que os impostos consumiam 95% dos rendimentos de um trabalhador com carteira assinada e quem produzia não tinha direito a nenhum Vale. Os políticos venceram e a vida mudou completamente.

Nos dias atuais as únicas pessoas que levam uma vida digna são os políticos. Têm segurança vinte e quatro horas, carros blindados, mansões fortificadas, restaurantes próprios para si e familiares, áreas de lazer e shoppings para utilizarem cartões corporativos. Parte da população vive apavorada em casas com grades, dormindo em porões cimentados e se comunicando virtualmente com amigos e familiares. Os bares, pizzarias, praças e ruas, hoje pertencem aos Com Vales, são considerados intocáveis, pois são eles que elegem os mandantes.

Contamos o tempo de muitas maneiras. Estou escrevendo esse relato no ano gregoriano de 2.062 dc, também grifado de 50 db (Cinqüenta depois de Bete), pois foi em tal reinado que as causas da degradação se iniciaram, a bem da verdade podemos recuar vinte anos ab (20 antes de Bete)e encontraremos a raiz do mal.Esta cidade era de uma beleza única, pacata,amena, festeira. A ruína foi silenciosa. Pedintes tomaram conta da área central da cidade espantando os raros turistas, grilagens no entorno da cidade, obras desnecessárias e caras em detrimento de obras essenciais como Maternidade, Velório Público, modernização da Saúde. Falta de segurança e descaso com o tráfico de drogas, tornaram os cidadãos reféns de usuários e bandidos.

A compra de votos ou troca por favores, era o modus operandi de politiqueiros locais, um atraso na vida de quem sonhava com progresso. Com a aceleração dos problemas climáticos e o fatídico tsunami do ano 30 db (2.041 dc)veio o caos. As pessoas que já viviam há décadas sustentadas pelas benesses do governo fizeram novas reivindicações e foram atendidas. Quem trabalhava não tinha direitos e quem vivia dos muitíssimos impostos mandava e desmandava.

Hoje, a sociedade está assim dividida. Temos os políticos e seus asseclas no topo da pirâmide social. Temos os Com Vales, pessoas que não quiseram estudar e nada produzem, mas que sobrevivem como intocáveis e temos os que estudaram e trabalham para sustentar a sociedade dominante. É proibido escrever contra as oligarquias, este texto será colocado numa garrafa de vidro e jogado no mar. É meu legado ao futuro, não sobreviverei a novas torturas, estou velho e cansado. Partirei levando na memória os dias infantis, o verde das nossas matas, a fartura de peixes, os bandos de pássaros enfeitando o céu, o coreto da Praça da Matriz, os banhos na Fonte do Senhor, o vento leste amenizando o calor, a lembrança feliz da criança que fui e da cidade que amei.

Dito Prado/50 db/Iguape

Gastão Ferreira/2011/Iguape

Deixe um comentario

Livro em Destaque

Categorias de Livros

Newsletter

Certifique-se de não perder nada!