Dona Sinhá…

DONA SINHÁ

         Eram
tempos difíceis, a família do coronel Marcondes passava por um período de vacas
magras. Não! O coronel não era fazendeiro. Possuía um engenho de arroz e a
produtividade estava em queda. O casamento de Emerenciana com Daniel, o filho
de João Dornas, o grande industrial, talvez fosse à solução.
         Merê
apelido de Emerenciana, uma jovem de quinze anos, quase uma titia para uma
época em que as mocinhas costumavam casar aos treze anos. Criada dentro dos
rígidos princípios de então, moradora do entorno da Praça da Matriz, assistia a
duas missas diárias. Um amor de menina! Seu censo de humanismo a levava a
espancar diversas vezes ao dia suas escravas; – “Nada como uma boa chicotada
para impor respeito” dizia. Era odiada pela criadagem.
         Daniel
comprou e reformou um antigo sobrado. Ali seria seu ninho de amor, livre da
vigilância paterna finalmente realizaria seu sonho secreto, amar sem reservas a
dona de seu coração. Encomendou os móveis no Rio de Janeiro, as finas alfaias
vieram da Europa, as louças de Portugal. Sua amada merecia do bom e do melhor.
         Merê não
amava Daniel, o casamento seria pura conveniência, a maneira pela qual seu pai
fugiria a falência. O enxoval estava pronto há muitos anos, a única lembrança
que levaria da casa paterna seria um quadro em que ela abraçada a uma magnífica
Cruz de Pedra confirmava sua fé. A Cruz viera de Portugal e enfeitava o
frontispício da Igreja, uma obra de arte para nenhum pagão por defeito.
         As bodas
foram supimpas, a fina flor da sociedade estava presente, no cais do porto
dezenas de barcos vindos dos mais diversos engenhos da região, coches e
cabriolés engalanados chegavam dos palacetes, liteiras conduzidas por escravos
traziam as madames e senhoras da elite. Um coral entoava os hinos de núpcias,
as damas de companhia e os jovens pajens escolhidos entre as famílias mais
nobres, nenhum pobre para por defeito nos arranjos… Uma festa para os
abastados e seus herdeiros.
         Na nova
casa os serviçais estavam a postos. Jair era o moleque responsável pelos
recados, Joaquim o condutor do coche familiar, Anízia a cozinheira tendo Andréa
e Marta como ajudantes. A jovem Benedicta era a mucama e responsável pelo bom
desempenho dos demais escravos. Merê odiou todos eles e não via a hora de
educá-los convenientemente.
         O
coronel Marcondes visitava amiúde a única filha e insistia que estava na hora
de Daniel ajudá-lo a sair da pindaíba. Merê devia agir conquistando a confiança
do marido e solicitar auxílio, foi para isso que casara com o ricaço. Merê
notou que Benedicta ouvira a conversa entre ela e o pai… Chamou a atenção da
mucama com dois sonoros bofetões e informou que da próxima vez seria açoitada.
         Daniel
permanecia insensível aos problemas do sogro que acabou indo a falência. O
coronel Marcondes tornou-se inimigo mortal do genro, conseguiu que a filha
desviasse alguns recursos do marido e montou um pequeno negócio fora da cidade.
Merê começou a mostrar sua verdadeira personalidade, mal amada, rancorosa,
mesquinha, descontava nos escravos seu rancor… O tempo foi passando e a vida
no sobrado era um inferno.
         João
Dornas vendeu suas propriedades e montou uma nova firma no Rio de Janeiro.
Daniel foi visitar o pai e levou Jair e Joaquim… Merê também foi passar
alguns dias com os pais e juntos tramaram a morte de Daniel. Ao voltar para a
cidade, Benedicta, Anizia, Andrea e Marta haviam desaparecido. Merê mandou
chamar seu pai para resolver a situação, contratar um Capitão da Mata para
capturar as fugitivas, açoitá-las no pelourinho e recuperar tudo o que as
escravas roubaram, pois as pratarias e o ouro desapareceram com elas. Foram
consultar o juiz para tomar as devidas providencias.
         O Juiz
informou que nada havia a fazer, que Daniel vendera o palacete e que os
escravos como propriedades pessoais o seguiram. Que Merê lesse com atenção o
contrato nupcial, ele fora feito com separação de bens e a lei dizia que suas
posses eram o que levara consigo ao casar. Merê só pode retirar da casa o
quadro em que ela abraçava a Cruz de Pedra e mais nada, pois até suas suntuosas
roupas foram levadas pelas escravas.
         Emerenciana
foi morar com os pais e atendia aos fregueses na vendinha a beira da estrada,
era tratada como Dona Sinhá. Um dia atendendo um cliente desconhecido ficou
sabendo que era um caixeiro viajante e trabalhava na firma do milionário João
Dornas com sede no Rio de Janeiro. Com muito jeito conseguiu informações do seu
ex-marido. O caixeiro contou que João Dornas tinha um filho de nome Daniel, um
homem muito corajoso, que enfrentou a sociedade e a família para ficar com a
pessoa que amava desde a juventude, uma morena chamada Benedicta, seu grande
amor e companheira… Era muito feliz! Nesses tempos modernos, de muitas
mudanças, com o poder do ouro tudo era aceito.
         Dona
Sinhá envelheceu sozinha, uma mulher amarga sem amigos sinceros, uma mulher que
pensa ser o ouro a melhor companhia, uma solitária convivendo com fantasmas e
se julgando acima do bem e do mal… Olhando para o quadro em que abraça a Cruz
de Pedra, com os olhos marejados de lágrimas, relembra o passado; – “Tudo
poderia ser diferente, eu plantei! Eu colhi.”
Gastão Ferreira/2012
        

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