A origem do mito

A ORIGEM DO MITO…

CRÔNICAS DE PINDAÍBA

1 – A ARCA DE NÃOÉ

Nãoé despertou apavorado, pela centésima vez tivera o mesmo pesadelo. Tupã lhe aparecia em meio a raios e trovões e lhe ordenava construir uma ygara (jangada em Tupi-guarani) a qual salvaria da extinção alguns elementos da região.
– Será que dormi novamente torrado? Não é possível acontecer logo comigo uma coisa dessas! Talvez meu nome atraia esses pesadelos! Como eu gostaria que minha alcunha fosse Ary Oswald, Magnólio, Agenor, Benedito ou até mesmo um inofensivo José… Mas não! Meu pai me colocou esse nome ridículo de Nãoé… Agora esse tal Tupã que não me deixa dormir sossegado, gritando a noite toda no meu sonho; – Nãoé! Construa uma ygara. Os tempos chegaram! A terra será alagada, tudo surucará. Salve pelo menos alguns de meus fiéis, amados, honestos, puros e dedicados filhos. Nãoé! Salve-os. Salve-os!
Nãoé, sem querer querendo, contou seu sonho no bar do Dito Pelado e logo todo o povoado ficou sabedor. Formou-se uma multidão implorando uma vaga na ygara de Nãoé.
Nãoé até que gostou do puxa-saquismo do povão e de improviso tascou um discurso; – “Meu povo do Valo Grande e minha póva do Valo Pequeno notem vocês que pelo reduzido tamanho da igara, ela não poderá levar a todos nessa jornada de salvação. Tupã foi claro e preciso, falou e disse; – “Só os meus fieis, os puros, os honestos e dedicados serão salvos do nefando perigo.” Todo o fofoqueiro, mensaleiro, nepotista, fdp, cuidadores da vida alheia, condenados por improbidade ou não, puxa sacos de carteirinha carimbada ou não, e, o escambau a quatro ou a cinco, eu, não levo! Eu não levo! Não levo.”
O local ficou quase vazio. Um grupo de crentes que orava pelo final dos tempos, pediu vaga. Nãoé foi categórico; – “Crentes? Nem pensar. Não entram na minha ygara nem que Jeová tussa! Vocês não vivem dizendo que já estão salvos? Então, que palhaçada é essa? Só posso salvar os nãos salvos, os do mundo. Por favor! Parem com o histerismo. E, nada de pragas e traumas. Entendido? Ou, querem que eu desenhe?”
Um grupo GLS solicitou agasalho… “GLS? Não posso! Se for levar toda a fauna da região a ygara afunda. Por favor! Segurem a franga. Por favor! Por favor. Cada um no seu quadrado.”
O pessoal da terceira idade, digo, da melhor idade implorou uma vaguinha; – “O que é isso meus veios? Vocês estão no fim da picada, deem lugar para os jovens que terão um futuro garantido e depois não posso perder tempo fazendo sopinhas e papinhas para menininhos e menininhas decréptas. Eu hein!”
Assim foram descartados todos os que o procuravam um lugar na ygara. Políticos, apolíticos, ateus, ameus, anossos, atôas, são e aleijados, santos e pecadores. Os habitantes do lugarejo estavam inconformados, prontos para linchar Nãoé, quando se formou a maior tempestade já vista… O céu escureceu… Raios e trovões… Pedras de gelo de cinco quilos… Vendaval e vendavinhos… O mundo ficou surdo e mudo perante o dantesco rebuliço, o toró começou. Tudo estava sendo alagado. As mansões, os casebres, as casas de cômodos e incômodos, as casas de tolerância e intolerância, os bares e botecos, as igrejas, as mesquitas e sinagogas, os terreiros de vodu e candomblé, em fim, o pequeno e insignificante vilarejo sem nome, pelo jeito jamais teria um nome, pois tudo estava sendo destruído. Os poucos que sobreviviam em cima das árvores, mas que logo pereceriam afogados, ainda notaram a ygara que flutuava nas águas revoltas, levando entre todas as criaturas vivas que habitavam o local, apenas Bilú, Margareth, Nolinho, Nãoé e um cachorro sarnento que jamais entendeu porque foi salvo.
A Ygara vagou por oitenta noites e setenta e nove dias. Aportou em um local aprazível, um sitio cercado de verdes montanhas e um imenso e majestoso rio. Esse lugar, num futuro muito distante ficará conhecido como o fantástico e inacreditável reino de Pindaíba. Nãoé e os sobreviventes foram os primeiros a descobri-lo e habitá-lo.

Gastão Ferreira/2009

2. ICAPARA

Nãoé abandonou a ygara e imediatamente começou a erguer um povoado. Lembram que aportaram na localidade alem de Nãoé, um tal Bilú, Nolinho, Margareth e um cachorro sarnento? Nessa fase da vida, Nãoé já era um ancião, estava na melhor idade e nem se importou quando Nolinho e Bilú iniciaram uma aproximação, digamos mais íntima, com Margareth. Era uma graça de se ver… O melhor peixe, a maior banana da terra, o maracujá mais suculento, o Mico Leão mais bem moqueado, tudo era dado em sinal de amor à Margareth, que começou a engordar, engordar e não mais parou de engordar. Nãoé educadamente interferiu e acabou com o insipiente namorico; – Parem de alimentar essa mulher! Parece uma porca de gorda. Daqui pra frente só deem água da fonte e casadinho de manjuba. Se ela iniciar um regime, eu libero a indiada para vocês.
Foi só Nãoé dar a notícia e Bilú e Nolinho ficaram ouriçados; – “Cadê? Cadê as índias?”
– “Estão construindo um Sambaqui nas cercanias!” Disse Nãoé.
– “Nossa! Vamos ter uma escola de samba no pedaço.” Falou uma deslumbrada e loira Margareth.
– “Que escola de samba menina?” Perguntou Nãoé.
– “Ué! Se tiver samba aqui, então tem uma escola de samba por perto.” Explicou Margareth.
– “Aí meus neurônios!” Exclamou Nãoé.
De comum acordo e também porque era muito trabalhoso construir um imenso e moderno povoado para apenas quatro pessoas, resolveram conhecer o local onde estava situada a tribo indígena. Caminharam… Caminharam… Caminharam uns doze quilômetros e avistaram as malocas. Nãoé ordenou:- “Aqui para!”
Margareth, a dourada, exclamou boquiaberta; – “Que lindo nome! Icapara.”
– “Quem colocou esse nome nesse belo e bucólico lugarejo?” Perguntou Nãoé.
– “O senhor seu Nãoé! O senhor acabou de dizer Icapara.”
– “Não, minha linda leitoa oxigenada! Eu disse, aqui para, mas podemos chamar esse aprazível local de Icapara. Tem tudo a ver com esse cheiro de mato, essas plantações de mandioca e esses índios peladões.”
Chegaram os selvagens e cercaram os quatro caras pálidas. Após o estágio de reconhecimento, isso é, apalpa aqui, cheira ali, enfia o dedo lá, alá e acolá, começou a confraternização… Tudo prato típico, Bugio no espeto, Tainha na folha de bananeira, Quati grelhado, Parati e Paramim na brasa, suco de Maracujá, Araçá e Butiá na Cataia.
Foi a maior festança. Margareth matou todas as suas fomes, só não transou com o cacique por respeito as suas cinco ferozes e ciumentas esposas. Nolinho e Bilú se aproveitaram tanto da Cataia quanto das belas, selvagens e nuas índias tropicais, aprendendo muitas sacanagens com elas.
Foram convidados a se radicarem no local. Nãoé ganhou uma maloca só para si. Margareth ficou para lá e para cá, indo de oca em oca. Bilù e Nolinho se amocozaram na maloca dos solteiros e ninguém nunca soube o que aconteceu por lá.
Nove meses após a chegada da gangue, digo, do grupo de Nãoé, Margareth teve dois lindos curumins. As vinte índias solteiras que cuidavam de Nolinho e Bilù continuaram solteiras, mas cada uma teve seu neném branquélo. Assim começou a mistura étnica chamada Caiçara. Foi em Icapara que tudo teve início e segundo o livro dos Piratas da Barra, será de lá que chegará o fim.

Gastão Ferreira/2009

3. A DESCOBERTA DE PINDAÍBA

“Os Últimos Filhos de Tupã dos Últimos Dias” estavam por aqui com os icaparanos que só pensavam em festas, festinhas e festões. Com a criação do polo turístico, de gente e gentinha entrando e saindo da vila, até os animais silvestres desapareceram, temerosos de virarem espetinho de gato assim que botassem a cara no povoado. Meio quilo de Mico Leão Dourado custava mais caro do que ova de Tainha em peixaria, e, um insignificante Tapir valia o preço de um bezerro desmamado.
“Os Últimos…”, Que equivaliam aos crentes do futuro, diziam que não eram do mundo. O povinho ateu e atôa sorriam e comentavam; – “Pode ser que eles não sejam do mundo, mas as filhas são!” e ripa na chulipa. Esses atos e ditos obsceno constrangiam sobremaneira os “Últimos…”, os quais partiram para os finalmente. Fizeram uma reunião no terreiro (?) de Tupã e após o sacrifício de um Jacu preto (suas galinhas de macumba da época), tomaram diversas decisões. Venderiam seus bens móveis e imóveis. Os móveis eram os escravos porque se moviam seu burro! E, os imóveis os inúmeros prédios comerciais onde ocorriam as orgias, as bacanais, as cachaçada homéricas que tanto ofendiam a moral dos crentes, mas como dindim é dindim, nunca reclamaram diretamente dos inquilinos que pagavam aluguéis absurdos pelos lupanares.
Como todo o idiota sabe, dinheiro é dinheiro. “Os Últimos…”, pediram horrores para venderem as espeluncas, os comerciantes que não tinham essa grana toda resolveram apelar para o agiota de plantão, um tal João Qualquer Coisa. Tinha esse apelido porque comprava qualquer coisa na “bacia das almas”, dava uns enfeites e vendia dez vezes mais caro.
O povo ignorante como só pode ser um morador da roça, não concordava com o que “Os Últimos…” estavam fazendo e começou um quebra barraco bonito de se ver. Tacaram fogo nas propriedades e em vários irmãos da seita… Muita gente foi ao encontro de Tupã antecipadamente. Na verdade foram tantos os exterminados que até o nome tiveram de alterar. “Os Últimos Filhos de Tupã dos Últimos Dias” passaram a se chamarem de “ Os Últimos dos Últimos Filhos de Tupã dos Últimos Dias”. No final do entrevero, “Os Últimos dos Últimos…” foram expulsos daquela Sodoma caipira abaixo de porrete e só com a roupa do corpo, pois, quem tudo quer! Tudo perde.
Embrenharam-se na mata e como não possuíam bússola, perderam-se. Foram atacados por terríveis onças pintadas e oncinhas não pintadas, jaguatiricas, lobos guarás, macaco prego, macaco aranha, macaco formiga, macaco tamanduá. Todos esses bichos eles mataram de letra e praticamente acabaram com suas raças, sofreram mesmo foi no bico de mutucas, pernilongos e mosquito pólvora.
Nessa andança, o povo de Tupã, foi dar (?) no Pé da Serra, Itatins, Jipuvura, Mumuna, Quatinga, ou seja, em qualquer estância aonde chegavam eles davam, e, como davam. Dava canseira, cabeçadas e com os burros n’água… Resolveram invocar Tupã e pedir seus conselhos. Seguiram o sagrado ritual, após muito cauim, uhásca e canábis, sentiram a presença do puro, benevolente e clemente Tupã, que amorosamente aconselhou seus filhos:
– “Bando de cretinos, fdp, perdedores do cacete! Como tiveram a ousadia de abandonarem o local onde eu tinha tudo de graça e começarem a andar pelo meio da mata sem um guia, um mateiro? Meu Deus! Sem um mísero mapa. Olhem aqui seus bostinhas! Tão vendo aquela trilha ali? Pois é! Vão seguindo a dita cuja que todos vocês irão dar em Pindaíba. E, nunca mais me incomodem para fazerem perguntas ridículas, para isso tem mãe de santo, cartomante, terreiro de macumba, o escambau! Entenderam-me? Tão pensando que eu sou o que? Um moleque de recados? Um candidato a algum cargo necessitando de votos, que tem que aturar tudo de vocês? Eu sou Tupã! Eu sou Tupã… Tu… Pã.”
“Os Últimos dos Últimos…”, apavorados e gratos pela infinita bondade de Tupã, pegaram a estradinha e tomaram o rumo sul. Aquela coisa de sempre, caminhar, caminhar, caminhar… Comer, comer, comer… Fazer coco, beber, beber, dormir, dormir, dormir e dormir que ninguém é de ferro… Ah! Eventualmente e na moita fazer mais um “Último Zinho”
Após dias e dias nesse tédio tedioso… Matar onça, esgoelar macacos, correr de cobra venenosa e se estapear constantemente espantando borrachudos, chegaram a um sitio maravilhoso. Montanhas com todas as tonalidades de verde, bichos correndo por toda a parte, um rio magnífico, um lagamar deslumbrante, onde botos, robalos, tainhas e paratis saltavam a flor da água. Era a imagem do paraíso, o local mais belo jamais contemplado por olhos humanos. A dadivosa Natureza parecia sussurrar; – “Bem vindos! Bem vindos! Cuidem de mim e eu os tornarei felizes. Venham meus filhos! Fartem-se em minhas árvores frutíferas, saciem a sede nas fontes cristalinas dos montes, durmam sob esse céu estrelado, se embalem nas cantigas do mar. Bem vindos! Bem vindos! Cuidem de mim! Preservem-me.”
“Os Últimos dos Últimos…” estavam encantados, logo encontraram um ninho de nhambus. Pegaram os ovos e o casal de aves e sacrificaram a Tupã, em agradecimento ao fim da jornada. Quem teve o dom de ver, viu!… A primeira lágrima de dor rolou da face da divina Natureza, seus filhos os pássaros choraram com ela… Até hoje Pindaíba paga o preço do descaso com suas belezas naturais… Bem vindo a Pindaíba!

Gastão Ferreira/2009

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