A revolta

Seu Sinfrônio, viúvo de Dona Bernadete, estava inconsolável. Aos setenta e seis anos de idade perdera a companheira de uma vida; dona Dete não tomou a vacina para idosos e bateu as chinelas de dedo.
Todo o santo dia Seu Frônio visitava o túmulo da amada; o homem estava realmente arrasado; em uma sexta-feira treze, acompanhado de uma garrafa de Velho Barreiro, foi ao cemitério conversar com a defunta; contou da sua tristeza, sua saudade, das brigas com as netas que desapareceram com as poucas jóias da falecida e assim esvaziou a garrafa de pinga, e, adormeceu sobre a sepultura.
Eram três horas da manhã quando despertou; sonolento avistou alguns vultos e prestou atenção no que diziam; – “Temos que decidir o que fazer Alphonsus! É uma vergonha o descaso com o qual é tratada a nossa última morada.”
– Vosmecê está se referindo a esse matinho em volta das tumbas, Catherine?”
– Nem prestei atenção nesse pormenor; de uns tempos para cá, o nosso sono eterno tem sido interrompido por gemidos e sussurros que nada tem a ver com possíveis assombrações…
– São apenas casais enamorados procurando um cantinho para uma pega noturno…
– Uma vergonha Alphonsus! Quantos anjinhos estão enterrados aqui…
– Catherine! Catherine! Você sempre preocupada com o que os outros vão pensar… Já não somos mais desse mundo; deixe os vivos se divertirem…
– Abriram o túmulo de madame Ephifania e roubaram seus dois dentes de ouro; parece que os garotos vão trocar por pedras…
– Pedras? Que estranho, não?
– No final de semana passa um carro com o som no volume máximo; Dona Cothinha nem sai mais da sepultura… Um ultraje aos antigos moradores dessa pacata cidade…
– Tenha paciência mulher! Tantos alcaides estão enterrados por aqui…
– Eles não tão nem aí! Apenas fazem apostas em qual dos oito candidatos subirá ao trono no final do próximo ano…
– Homessa! Oito candidatos? Parece que tem uma mulher nessa disputa e também um animal silvestre com as garrinhas bem afiadas…
– São assuntos dos vivos! Não nos interessam mais…
– Nhãnhãnhã… Interessa sim! Precisamos assombrar a casa dessa gente para que prometam fazer uma limpeza total em nossa morada…
– Pura perda de tempo! Você ainda acredita em promessa de político? Inocente…
Nesse momento Seu Sinfrônio percebeu que presenciava algo assustador; muitas almas ficavam vagando pelo cemitério e não subiam aos céus… Grupinhos de espíritos fofocavam ao lado do jazigo de Dona Madá, a maior mexeriqueira que a cidade já teve; outros tocavam violas fazendo serenatas às amadas mortas. Alguns contavam moedas antigas e outros batiam em desafetos também finados… O espírito de Dona Bernadete saiu do sepulcro e foi logo desabafando; – “Velho safado! Pensa que eu não sei que me traiu com metade das galinhas da cidade! Estão todas enterradas aqui e me contaram tintim por tintim dos muitos chifres que levei… Chispa daqui! Se manda e nunca mais apareça, seu corno manso!
Seu Frônio jamais voltou ao cemitério; um local de muita assombração e almas revoltadas. Anda pensando seriamente em comprar uma sepultura em outro bairro, outro cemitério, um lugar sossegado para o sono eterno.

Gastão Ferreira/2015

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