A matilha

 

         Quando Seu Benedito Alvares Caiado, mais conhecido como Dito
Muçum, encontrou um bebê de aproximadamente dois meses, largado no meio da
mata, não teve dúvida, levou o recém nascido para casa. Belarmina, a esposa
ficou feliz, pois seu maior sonho era ser mãe, mas segundo os médicos ela era
estéril. Na Certidão de Nascimento consta que Joselino Silva Caiado é filho legítimo
do casal.

 

         Joselino, nosso conhecido Zé Micuim, cresceu forte e
saudável, de saúde invejável, jamais ficou acamado; aprendeu com o pai adotivo,
Dito Muçum, o trato da terra, o amor pela natureza, o respeito a vida. Sem
saber que era adotado, vivia feliz no Quilombo do Morro Seco, um bairro rural
de Iguape/SP, onde concluiu o ensino médio.

 

Zé Micuim, numa fatídica noite de lua cheia, foi atacado por um
lobisomem, e apagou completamente, mas ao despertar pela manhã, junto a
porteira do sítio onde vivia, lembrou perfeitamente de ter passado metade da
noite caçando junto a uma matilha de lobos, e guardava a nítida impressão de
que um negro jovem, muito bem apessoado, alto, corpo atlético, um cover de
Micuim, ter lhe abraçado e sussurrado;- “Bem vindo a matilha, meu neto!” 

 

         Zé Micuim contou ao pai, Dito Muçum, sobre o encontro com o
lobisomem, e nessa conversa ficou sabendo da adoção; Zé amava profundamento mãe
Bela e pai Benedito, mas ficou chocado por ter sido abandonado no meio da mata,
qual o drama que se escondia por detrás de seu nascimento?

 

         Pai Muçum e mãe Belarmina foram visitar alguns parentes na
cidade grande, Zé ficou cuidando da criação, e naquela noite ouviu uivos e
passos fora do rancho, saiu para enfrentar o visitante; era o grande e negro
cão que o atacara na estrada há quatro semanas. A lua incidia sobre a criatura,
a metamorfose foi rápida e frente à Micuim estava o rapaz que o chamara de
neto…

 

         – “Somos de uma longa linhagem de lobisomens, nossos
antepassados vindos da África já chegaram à esta região infectados com o vírus
da licantropia. Não se assuste, não somos monstros, apenas temos o poder de
mudar de forma em noites de lua cheia, vida longa, saúde perfeita, juventude
eterna.”

 

         – “Matam criaturas indefesas, bebem sangue, comem carne
crua…”, disse Zé Micuim.

 

         – “Os humanos matam indefesas galinhas, porcos, ovelhas…
Nós não somos nem melhores e nem piores, possuímos o instinto do lobo, e ele
fala mais alto…”

 

         – “O senhor, no outro encontro falou que eu era seu neto, é
verdade?”, perguntou Micuim.

 

         – “Sim, garoto! Você é meu neto, filho de meu único filho,
assassinado por Hilário Rocha Nunes nas matas desta região…”

 

         – “Seu Hilário Fala-fina, o dono do engenho de farinha de
mandioca?”

 

         – “Seu pai Heitor era um sonhador, se apaixonou pela filha
mais nova de Hilário Fala-fina, grande proprietário de terras no Morro Seco,
descendente dos pais fundadores deste quilombo, aqueles que 1840 montaram casa
nesta freguesia, Joaquim Alves Sabino, a esposa Maria Constância do Espírito
Santo e seus oito filhos, juntamente com Teobaldino Onório Pereira, esposo de
Rita Modesto Pereira e seus três filhos.”

 

         – “Então, eu sou parente de Hilário Fala-fina?”

 

         – “Sim, ele é o pai de tua mãe Jovelina Pereira Sabino, uma
vítima do preconceito que por séculos nos persegue…”

 

         – “Preconceito, vovô?”

 

         – “Nossa família está na região do Vale do Ribeira desde o
século XVIII, ainda temos muitos parentes no quilombo de Ivaporunduva, nossos
antepassados, e eu próprio, pois na época era um adolescente, no ano de 1850
mudamos para o quilombo da Aldeia, junto as terras herdadas por Leudobina,
filha de escrava e casada com João Miguel, convivíamos pacificamente com seus
nove filhos. Sua mãe meu neto Joselino, está enterrada no cemitério do Morro do
Cambicho, as margens do rio Una da Aldeia.” 

 

         – “Como mamãe perdeu a vida? Por que o senhor falou em
preconceito?”

 

         -“Teobaldino Onório Pereira, um exímio caçador de
lobisomens, sempre foi o terror de nossos antepassados, um dos poucos que
conhecia o nosso segredo familiar, e quando meu filho Heitor se perdeu de
amores por  Jovelina Pereira Sabino, o
velho Teobaldino e seu neto Hilário Fala-fina armaram uma armadilha para lobos
e atraíram Heitor para a morte, sua mãe, meu neto foi ferida e como não era uma
licantropo, veio a falecer… Eu vim te convidar para nos visitar no quilombo
da Aldeia; são só quatro horas pela mata fechada, é pertinho!”

 

         Foi assim que o quilombo do Morro Seco voltou a ter o seu
próprio lobisomem, Joselino Silva Caiado. Hilário Fala-fina nem desconfia do
bicho-fera, pois acredita que ele e o avô Teobaldino mataram o último
lobisomem.

 

         A saga de Zé Micuim está apenas no começo, e na próxima lua
cheia irá visitar a parentada no quilombo da Aldeia; vida longa à Joselino,
nosso Zé Micuim.

 

Gastão Ferreira/2020

 

 

                                                                           

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