A outra casa

 

         Desde
que se conhecia por gente, Maria Inês que até os dezoito anos morou na zona
rural, tinha estranhos sonhos; ela se via num belo casarão, um palacete com
eiras e beiras e três sacadas. Na calçada um rapaz, de olhar apaixonado, lhe
fazia uma seresta…

 

         Centrada
nos estudos, Maria Inês era uma moça educada,

tranquila, um tanto sonhadora, é
verdade! Nada de namoricos, estava se guardando para um grande amor, que tinha
a certeza, apareceria na sua vida; ela queria ser professora.

 

         Aos
dezoitos anos estava cursando magistério na capital do Vale do Ribeira e a sua
família veio morar em Iguape, uma cidade com quase quinhentos anos, famosa pela
preservação de dezenas de antigos solares, e velhos casarios com mais de
trezentos anos.

 

         Inês
ficou encantada com um casarão da Praça da Matriz, era o palacete de seus
sonhos infantis; ele era real, ele existia, e ela precisava conhecê-lo por
dentro, ver com os próprios olhos os móveis antigos, o sótão, o porão, a
senzala.

 

         Na
condução que levava e trazia estudantes da faculdade, conheceu Sônia Regina, e
a moça morava com o pai e um irmão no casarão da Praça da Matriz; ficou amiga,
Maria Inês contou de seus sonhos infantis e da necessidade que tinha de
conhecer por dentro a casa de Sônia. O convite para uma futura visita chegou
rápido.

 

         Festinha
de estudantes, canapés, licores, vinhos e cervejas; Maria Inês não apreciava
alcoólicos, mas para não fazer desfeita aceitou um cálice de cataia, e cataia é
dose para leão, ficou tonta na hora, e foi levada para um dos terraços a fim de
pegar um ar…

 

         Ela
se chamava Eleonora, estava com quinze anos, e casada com o coronel Raul, um
homem rude de quase setenta anos de idade; dada como um objeto em troca de um
pequeno sítio na zona rural era infeliz, mas o mundo era cheio de gente
infeliz… Ainda bem que existia Heitor, o entregador de peixe; somente ele
para fazê-la sorrir e esquecer a vidinha de prisioneira de luxo.

 

         Heitor
era um jovem pescador, corpo sarado, definido pelo árduo lançar de redes no
lagamar; metido a fazer versos e rimas, era exímio violeiro, um poeta caiçara,
e curtindo um amor proibido, o famoso amor fatal, coisa de almas gêmeas, coisa
de quem pode ser morto por um marido ciumento, e a paixão de Heitor tinha um
nome; Eleonora.

 

         O
coronel Raul estava cabreiro, uma escrava da casa, uma que prestava favores ao
coronel contou sobre Heitor e a troca de olhares entre a sinhá e o mancebo.
Eleonora negou, mas foi trancada no porão, a pão e água, por cinco dias… O
coronel viajou a negócios e a esposa ficou só no palacete, mas vigiada pela
jovem mucama.

 

         Heitor
ficou sabendo da viagem do coronel e a noite, juntou alguns amigos e foi fazer
uma seresta na praça, e bem debaixo da sacada do palacete de Eleonora, e foi na
noite em que o coronel retornou da viagem; à noite em que Eleonora foi
estrangulada, e enterrada no porão do palacete.

 

         Eleonora
ficou séculos presa ao casarão, o velho prédio passou por muitos donos… Um
dia Eleonora voltou à vida física para um novo aprendizado, mas a dor veio
junta, e junto com a dor as lembranças do palacete e de Heitor.

 

         As
amigas abanavam Maria Inês, a moça realmente estava passando mal, Sônia Regina
chamou o seu irmão Honório, que era estudante de medicina para socorrer a
rapariga… Honório, o melhor partido da cidade, futuro doutor, mestre de viola
caiçara, sonho de consumo de onze entre dez mocinhas da cidade.

 

         Honório
tomou Maria Inês nos braços, tinha que levá-la até a Unidade Mista de Saúde
para aplicação de glicose. Ao descerem os degraus da escada frente ao palacete,
Maria Inês despertou, abriu os olhos, passou os braços no pescoço de Honório, e
sorrindo lhe falou; Heitor, eu voltei…

 

 

Gastão Ferreira/2020 

                                                                              

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