A sombra da sombra

 

 

                Tilde, desde a infância conviveu com a situação; a casa era a última da
rua sem saída, e se localizava na entrada da mata, no Canto do Morro, um bairro
situado no sopé da montanha, na cidade de Iguape/SP. Durante o dia bandos de diversas
espécies de pássaros visitavam as árvores frutíferas, alguns lagartos fingiam
dormir, mas na verdade estavam atentos em busca de cobras venenosas. Uma vez
uma onça ficou horas parada junto a cerca de bambus, espiando as galinhas.

 

Foi nhá Chica, a avó materna de Matilde, quem chamou a atenção da menina;
-“Tilde! Depois do escurecer nunca passe da cerquinha de bambus, mesmo que as
vozes insistam…”

 

– “Por que
vovó? Eu não tenho medo das vozes, são elas que cantam para eu adormecer…”

 

 

         – “Meu Bom Jesus! Elas estão cada vez mais próximas de nós.
Quando eu era pequena, lembro que elas ficavam de longe e aparentemente nos
ignoravam…”

 

         – “Vovó Chica, o que são elas? ”

 

         – “São apenas sombras, minha neta! Um dia foram gente como a
gente, pessoas que se perderam na montanha e foram devoradas por feras, sombras
de sombras que partiram e não encontraram o caminho para um outro mundo…”

 

         – “Se são apenas sombras, por que não posso passar da
cerquinha de bambus, vovó? ”

 

         – “Porque elas te levarão para o fundo da mata, e você,
minha netinha, jamais encontrará o caminho de volta…”

 

         – “Elas parecem tão inocentes! No escuro posso ver seus
olhos vermelhos, são dezenas de olhos piscando e chamando o meu nome. Tem uma
com voz de menino, diz se chamar Afonso, e sempre me convida para brincar…”

 

         – “Afonso? Fonsim, meu filho de cinco anos, que numa noite
passou além da cerca e nunca mais foi encontrado. Tilde, você ouve a voz de
Fonsim? ”

 

         – “Quase todas as noites, vovó! Ele conta que é escuro o
lugar aonde vive, e que sente saudade do cavalo Amadeu…”

 

         – “Meu Deus! É realmente o espírito de Fonsim, Amadeu era o
nome do cavalinho de madeira com o qual galopava pelo quintal há quarenta anos
passado…”

 

         Tilde nunca passou da cerquinha de bambus, aprendeu muito
com as sombras; elas contavam histórias, histórias de coisas que não existem
mais. Elas sabiam da raça de pequenos homens que pescavam neste lagamar, os
formadores de sambaquis; falavam dos índios que habitavam a grande ilha,
próxima a cidade. Sabiam histórias de piratas, de donzelas apaixonadas, dos
negros fugidos que se escondiam na mata…

 

         As sombras existiam desde sempre, pareciam invisíveis, mas
na escuridão podiam ser divisadas, pois eram um pouco mais claras que a
negritude da noite; eram tidas como visagens, assombração, e temidas através
dos tempos.

 

         Matilde sentia saudade de vovó Chica; quando vovó completou
noventa anos, chamou a neta e lhe disse; – “Minha neta, hoje à noite vou
atravessar a cerca de bambus…”

 

         – “Não faça isso, vovó! A senhora sabe muito bem que jamais
voltará das sombras. ”

 

         – “Já vivi o suficiente, Tilde! Hora de ir morar com Fonsim;
todos os dias penso no meu menino que se foi…. Não se entristeça, criança!
Quando quiser conversar, é só me chamar junto à cerca; fique com Deus, querida!

 

         E foi assim que vovó Chica partiu há mais de oitenta anos, e
hoje Matilde completou noventa e cinco anos, fizeram uma grande festa, ela já é
bisavó, acredita que aproveitou muito bem a vida; passeou bastante, chorou,
amou, fez fofocas, se divertiu, sofreu seu quinhão de dores, e chegou a hora de
conhecer o outro lado…

 

Foi à última vez que Sirlei viu a bisa Tilde, foi bem no momento em que
ela pulou a cerca e simplesmente ficou invisível; Sirlei também ouve as vozes
que habitam as sombras, e sabe que daqui há muitos e muitos anos, ela reencontrará
a bisa Tilde, e o restante de seus antepassados naquele mundo que existe além
da cerca de bambus.

 

 

Gastão Ferreira/2020

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