Àquela tarde fagueira

 

                Ninguém poderia imaginar que aquele encontro seria a penúltima vez em que
todos estaríamos juntos, e saudáveis; os moleques da nossa rua costumavam à
tardinha ficarem de convercê, jogando conversa fora, bolando brincadeiras,
inventando histórias do arco da velha naquela esquina mágica, todos nós sentados
no meio fio da calçada num desbunde feliz.

 

         Naquela tarde fagueira ainda não conhecíamos a dor da perda
de um cupincha, a saudade de alguém que partiu para sempre; não existia a
inveja, a ingratidão, a urucubaca do desprezo, as marcas duradouras de uma
paixão escangalhada… Nosso pequeno mundo era inocente, e a vida era bela, e
cheia de sonhos.

 

         Separamos-nos, hora do banho e depois jantar, amanhã a nova
aventura combinada; ir até a margem do rio para observar as águas da enchente,
e armar algumas arapucas na mata…Felizes, cada um de nós foi para a sua
própria casa; naquela noite a barragem se rompeu e alagou a pequena cidade.

 

         Todas as famílias perderam alguém, centenas de corpos
soterrados, vários desaparecidos na lama; meninas que nunca se transformarão em
moças, mulheres, mães. Garotos que nunca chegarão à homens feitos, todos para
sempre crianças, presos  em fotografias,
esquecidos num canto perdido da memória, jamais envelhecerão.

 

         O luto durou semanas, cinco moleques da nossa rua perderam a
vida; o mais velho do nosso grupo tinha apenas doze anos, éramos pré-adolescentes,
o nosso antigo mundo era do balacobaco, um lugar estapafúrdio, desenxabido, do
borocoxó e pouco se sabia da vida e das muitas dores que ela contém, mas a
realidade chegou e nos marcou para sempre; o medo nos acompanhou, e a tristeza
se instalou em nossas jovens almas, e nossos olhos já não possuíam aquele
estranho brilho da pureza infantil…

 

         Dez anos se passaram, os sinais da tragédia foram se
apagando lentamente, e naquela noite, sem ninguém marcar o encontro, fomos se
achegando um a um na esquina de nossos ajuntamentos de criança. Já não éramos
os mesmos, alguns sem pais, sem mães, sem irmãos, todos com poucos amigos…

 

         Ficamos sentados em silêncio, cada qual com a sua dor, a sua
saudade, suas lembranças… Era inverno, tempo de neblina, e quando ela comeu a
esquina onde estávamos, todos nós escutamos os risos vindos do nada; vozes de
gente feliz. Ruídos chegando de muito longe, sussurros.

 

         Vultos de garotos perdidos na névoa, latidos de nossos
dogues que a enxurrada matou; os meninos que permaneceram crianças, sem
maldade, sem medo, sem futuro… Eles, nossos amigos de infância, acenaram com
suas mãos de nuvens, e com os seus olhos luminosos; eles nos sorriram e
passaram através de nós, seus corpos feitos de bruma foram subindo no ar e
desaparecendo, e esta foi realmente a última vez em que todos nós estivemos
juntos depois d
aquela tarde fagueira.

 

 

Gastão
Ferreira/2020 

          

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