Eulália

 

         No
Ano do Senhor de 1879 o Engenho Itaguá era referência na produção de farinha de
mandioca, arroz, peixe defumado, situado a dois quilômetros do


centro da
cidade, a única via de acesso era pelo lagamar; o local possuía seu próprio
porto de escoamento da produção agrícola.

 

         Sobrado
imponente, todo construído com grandes pedras assentadas com óleo de baleia e
ostreiros moídos, ampla cozinha, diversos quartos, salão de festa, dispensa no
subsolo, paredes com meio metro de espessura, a senzala ficava à parte, e
próxima a margem do lagamar, um pouco distante da casa senhoril.

 

         O
edifício da senzala era baixo, dividido em alguns cômodos. Um deles chamava a
atenção; correntes presas a parede, ferros de marcar, tornozeleiras de ferro
fundido, grilhões, máscaras de ferro, chicotes de couro trançado… Não muito
distante da moradia um pelourinho.

 

         O
casarão era magnífico, uma pequena cascata movia um moinho, água pura da
montanha canalizada para a cozinha e banheiros, frente ao sobrado o imenso Mar
Pequeno, berçário de robalos, pescadas, camarões e mariscos.

 

         A
menina escrava Eulalia foi comprada no Porto Grande de Iguape, a cidade
abrigava o segundo maior porto negreiro do país, e milhares de cativos por ali
passaram a caminho das lavouras e a cata de ouro nos rios da região.

 

         Eulalia
fugiu do cativeiro e escondeu-se na vila de Nossa Senhora das Neves de Iguape,
provavelmente embrenhou-se na mata, quiçá havia uma trilha entre o engenho e a
freguesia; seus donos achavam que ela estava oculta no povoado.

 

         A
história oral conta que os proprietários do Engenho Itaguá eram extremamente
severos, possuíam dezenas de escravos, e em breve todos os senhores seriam
trucidados pelos cativos, apenas uma criança escapou da carnificina, sua ama de
leite, uma escrava da casa se refugiou na mata com o pequeno, e levou dois dias
para chegar até a vila e contar da rebelião…

 

         O
causo que estou relatando é real, li no jornal que o dono da escrava estava a
sua procura, isto no ano de 1879… Não sei se Eulalia foi encontrada, e fico
imaginando… Se foi devolvida à seus donos, com certeza, passou dias
acorrentada na senzala e provavelmente experimentou o chicote de couro
trançado.

 

         Se
ela nunca foi encontrada, que vida dura teve Eulalia! O que será que lhe
aconteceu? Casou, teve filhos, morreu de morte matada, morreu de morte morrida?
141 anos se passaram e parece ser uma eternidade, mas são apenas seis gerações
que nos separam…

 

         Iguape
guarda muitos segredos, cidade antiga, próxima de meio milênio de história
real, seus sobrados, suas calçadas centenárias escondem gritos e lamentos,
risos e sonhos, alegria e dor. Iguape é apenas um cenário, um magnífico cenário
em meio à vegetação da Mata Atlântica, aos rios cristalinos, ao imenso e
piscoso lagamar… Nós fazemos a nossa história, e aqui cada um de nós encena o
seu drama, a sua comédia, a sua tragédia.

 

         Eulalia
partiu para o esquecimento, se não tivesse fugido para a liberdade, jamais
saberíamos de sua existência; que onde você estiver triste Eulalia, todos os
teus sonhares sejam sonhos felizes.  

 

Gastão Ferreira/2020

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