O espelho de bronze

 

         Os
antigos diziam que alguns espelhos são portais para outros mundos, outras
dimensões. No decorrer das grandes tempestades eles eram cobertos, o que também
acontecia na véspera do Dia de Finados, e na Sexta-feira Santa, dia em que o
Nosso Senhor desceu aos infernos e o demônio ficou solto no mundo.

 

         Minha
intenção era passar alguns dias a beira-mar, num lugar isolado, longe da
civilização; assim aluguei uma suíte numa pousada próxima à praia, casa antiga
com quase trezentos anos de histórias, e com a terrível fama de ser mal
assombrada.

 

         A
proprietária, Nhá Zidora, parecia uma personagem saída de um conto de horror da
Idade Média; só aparecia após o escurecer, usava um vestido a moda cigana, uma
bandana nos brancos cabelos, esquelética, unhas compridas, seu nariz era
adunco, ela estava sempre acompanhada de Zartan, seu gato preto de olhar
brilhante.

 

         A
pousada ficava em uma ilha, um lugar praticamente deserto, e uma única vez por
semana uma lancha vinda do continente trazia víveres e novidades, pois nem
eletricidade havia no albergue.

 

        
eu de hóspede, Nhá Zidora avisou que após o anoitecer os lampiões permaneceriam
acesos até as vinte horas. Lembrou que o quarto deveria ser chaveado e que era
apenas sua a responsabilidade pela minha segurança física e emocional, então
nada de perambular pelos corredores da pousada depois das vinte e duas horas.

 

         O
café da manhã, a moda caiçara, era servido por Lenora, uma jovem e bela morena,
risonha e simpática, o gato Zartan parecia vigiar a serviçal. Não notei mais
nenhum empregado na casa…

 

         Na
terceira noite acordei com um ruído no corredor, contrariando as ordens da
proprietária, abri uma fresta da porta e espiei para fora; Nhá Zidora estava
parada frente a um espelho e parecia retirar Zartan de dentro do objeto, depois
cobriu com um pano escuro o espelho. Gelei! Será que a casa era realmente mal
assombrada?

 

         Pela
manhã a primeira coisa que fiz foi vistoriar o espelho; era muito antigo, feito
de bronze, com detalhes artísticos. Quando olhei para o espelho fiquei
arrepiado por inteiro, Zartan soltou um miado assustador… Lenora correu ao
meu encontro, e muito pálida sussurrou; – “Não pode descobrir o espelho! Se o
demônio que o controla enxergar o senhor, o senhor estará perdido para sempre…”

 

        
Que é isso, Lenora! Quer me assustar?

 

        
Não senhor! Quando voltar para a sua casa, se conseguir voltar pesquise a minha
história; meu nome é Eleonora de Alencar Cordeiro, e desapareci no ano de
1910…

 

        
Brincadeira! Você aparenta ter uns vinte anos de idade, e estamos em 2020, 110
anos após o seu desaparecimento e você continua jovem…

 

        
Não estou brincando! Vim aqui passar féria com minha família, eles na época
acharam que eu fora raptada, ou me afogado na praia… Meu corpo nunca foi encontrado.

 

        
Impossível! Mas como pode ter acontecido isso?

        
Nhá Zidora já estava por aqui, ela é uma bruxa, alguém vindo de outra
realidade… Só pode aparecer à noite, de dia ela tem outra vida em outra
dimensão, eu sei por que andei por lá.

 

        
E por que não foge, por que não abandona a ilha?

 

        
Eu não existo fora desta casa, o senhor está aqui tem três dias e nunca me viu
do lado de fora da pousada, Zartan é um dos demônios vindo da outra dimensão, é
ele quem controla o espelho, tenha cuidado…

 

         Óbvio
que não acreditei nas lorotas da moça Lenora, contava uma lenda urbana para
atrair novos hóspedes, mas que algo estava errado estava… Nhá Zidora me
olhava de modo estranho, Zartan me seguia o tempo todo, resolvi tirar a limpo o
mistério.

 

         Fiquei
postado junto à porta do quarto e prestando atenção nos ruídos do corredor por
uma minúscula fresta; Lenora em silêncio apagou os lampiões, o último estava
frente ao espelho e permaneceu aceso. Uma estranha claridade azulada saia do
espelho, a figura de Lenora começou a se desfazer no ar, e Nhá Zidora se
materializou, e a luz do espelho se tornou opaca… Nhá Zidora apagou o último
lampião e os olhos de Zartan brilharam na escuridão.

 

         Não
preguei olho o resto da noite, era o dia em que a lancha viria me buscar, o
ancoradouro ficava a 100 metros da pousada; tomei apressado o café da manhã,
deixei a bolsa de viagem próxima à porta de saída, dentro dela o espelho de
bronze e fiquei na espera da embarcação aportar.

 

         Quando
ela chegou chamei Lenora para me despedir, e de supetão arrastei a moça para
fora da casa, ela simplesmente se desfez no ar, e eu corri para a lancha…
Atrás de mim, Zartan quase voava, mas não me alcançou…

 

         Em
casa pesquisei sobre Eleonora de Alencar Cordeiro; realmente a menina moça era
herdeira das indústrias Cordeiro & Alencar, desaparecida aos 18 anos em uma
ilha deserta, seu corpo nunca foi encontrado, nenhum resgate foi pedido, tudo
leva à crer que ela se afogou e o mar levou o seu corpo para o desconhecido.

 

         Nunca
contei essa história, ninguém acreditaria em mim, o espelho está trancado num
cofre, não tive coragem para quebrar, e da última vez em que me olhei nele,
senti que Zartan me buscava através do espaço tempo… Agora eu acredito, e sei
que espelhos são portais para outras dimensões, outros mundos.

 

 

Gastão Ferreira/2020 

 

        

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