O lobisomem do Morro
Seco

 

         Quem conhece o bairro Morro Seco, no município de Iguape,
litoral sul do Estado de São Paulo, sabe da dificuldade de se chegar ao centro
da comunidade quilombola ali situada; o local é cercado pela densa mata
atlântica, estradinhas de terra esburacadas levam às porteiras de inúmeros
sítios, todas afastadas da entrada das fazendolas.

        

         No centro da vila uma igreja e dois salões comunitários,
nenhum bar, lanchonete, bodega, armazém, casas afastadas uma das outras,
caminhos desertos, muita água represada, viveiros de peixes em cativeiro, gado
leiteiro, pomares, variada plantação de legumes e hortaliças.

 

         A paisagem é deslumbrante, campos verdes, belas casas, altas
montanhas, tirando as mutucas, que são endêmicas na mata atlântica, é um
paraíso na Terra. Por ali ainda existe o tapir, o tamanduá, a onça, o tateto, o
quati, o bugio, serpentes venenosas e muitas histórias de arrepiar os cabelos.

 

         Morro Seco é terra quilombola desde meados do século XIX,
muito sangue de negro fujão regou aquele chão. Nas noites estreladas, de céu
límpido, ao anoitecer ainda se escuta o uivo dos cães, como se prestando
homenagem à algo desconhecido, o lugarejo tem poucos habitantes, a maioria
descendentes de cativos que escaparam da cidade grande, na época da escravidão,
e ali, nenhum dos moradores se afasta de casa em noite de lua cheia.

 

         A floresta é farta em caça, talvez seja esse o motivo de um
grande cão negro, que perambula pelas estradinhas de terra no meio da mata, não
atacar os animais de cativeiro. Quem cruzou o caminho do cão-fera jamais
esqueceu; Seu Dito Muçum, que o diga.

 

         Seu Dito Muçum acabara de abater uma raposa, nem recarregara
a espingarda quando ouviu um estalo de galho quebrado, ao se voltar deu de cara
com um grande cão negro; não era um cão comum, era imenso, olhos vermelhos,
bons músculos… O cachorro farejava o sangue da raposa, soltou um uivo
horrível e abocanhou a caça e adentrou a mata.

 

         Dito Muçum seguiu o cão, nenhum cachorro guaipeca rouba uma
caça sua. Numa clareira o cão solitário estraçalhou a raposa, Seu Dito espiava
a cena escondido entre a densa folhagem. Ao acabar o repasto o cão ficou em pé
nas patas traseiras e lentamente se transformou num homem, e a primeira coisa
que disse foi; – “Sinto cheiro de gente, hoje vou comer carne humana.”

 

         Seu Dito Muçum foi se arrastando por uns trinta metros,
tomou coragem e se escafedeu na mata; nunca mais saiu de casa em noite de lua
cheia. Só contou para seu filho de criação, Zé Micuim, o estranho encontro e
pediu que o rapaz ficasse em casa nas noites de lua cheia. A história de Zé
Micuim era triste, foi encontrado envolto em trapos no meio da mata, com poucos
meses de idade, foi adotado por Dito Muçum, era um jovem alegre, trabalhador,
bem apessoado, um tanto tímido.

 

         Dois anos se passaram, e Zé Micuim ficou vários dias na casa
de um amigo na cidade grande, ganhou uma carona para voltar para casa; o carro
o deixou no começo da estradinha de terra, sua casa estava exatamente a dez
quilômetros do local, e faltavam quinza minutos para a meia noite.

 

         Silêncio total, quebrado apenas pelo piar de um pássaro
noturno; caminho de terra banhado pela luz do luar, no céu uma imensa e dourada
lua parecia acompanhar os passos de Zé Micuim, e de repente um uivo, um
lamento, um enorme cão negro salta no meio da estrada a poucos metros de Zé
Micuim, o rapaz tenta correr, é alcançado pela besta-fera, jogado à margem do
caminho, a pata do animal está sobre seu corpo; a pata começa a se transformar
em uma perna humana, Zé encara a besta-humana, e neste instante sente as garras
do animal em seu peito… Desmaia.

 

         Zé Micuim acordou na porteira do sítio, ao seu lado um porco
do mato já limpo, pronto para assar; abre a camisa e nota que seu corpo está
perfeito, sem nenhum arranhão; um gosto de sangue na boca, uma leve fadiga como
se tivesse corrido a noite inteira, lembrança esparsa de uma grande caçada,
muitos cães cercando a caça, e a figura de um negro jovem, brancos dentes de
marfim, quase um clone seu, lhe abraçando e dizendo feliz; – “Meu neto,
bem-vindo a matilha!”

 

Gastão Ferreira/2020

          

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