O Tamanduá e a Formiga

 

         Naquele
reino distante, para além dos confins, dois partidos políticos dividiam
corações e mentes, e também o cofre municipal. Através dos tempos as duas
facções tiveram diversos nomes, apelidos, codinomes; borboleta e beija-flor,
jacaré e capivara, cocho e berne, Eva e Adão, daqui e de lá, de dentro e de
fora, juntos e misturados.

         Todos
concordavam que o reino estava situado em um pedaço esquecido do Paraíso; rios
de águas límpidas e cristalinas, florestas intocadas, onças, capivaras, paca,
tatu, cutia não, macacos prego, macaco aranha, mico-leão, mico-gato, bicho
preguiça, bicho carpinteiro e muitos outros bichos, além de uma infinidade de
espécies de peixes, repteis e plantas medicinais.

         No
reino, praticamente todos se conheciam, se não pessoalmente pelo menos de fama,
assim não causava espanto quando alguém em cargo comissionado, ou função de
confiança metia a mão no pote de ouro e lambuzava os dez dedinhos; – “Só o
alcaide é quem não sabia! Quanta inocência.”, dizia o Zé Povinho.

         Aliás,
o Zé Povinho mão perdoava, adorava fazer caridade; não podia ver um pedinte que
já dava uma moeda para o café, e ainda falava bem alto para que todos ouvissem;
– “Os cinquenta centavos são para um café, e não para uma dose de pinga, olha
lá, hem!”, com o tempo a fama de bom coração dos cidadãos locais se espalhou, e
chegaram sem teto, sem rumo, sem tostão, sem vergonha, de todos os cantos, se
apossaram do Centro Histórico, da Fonte do Senhor, das praças e jardins, e foi
então que o Zé Povinho, que fazia questão de dar moedas, comida, roupas e
agasalhos aos pedintes e mendigos, começou à culpar o
alcaide de plantão pela situação.

         O
Zé Povinho não sossegava, dia e noite, noite e dia, de lá para cá, daqui para
ali, parecia um carreiro de formiga; os filhotes de Zé Povinho jogavam garrafas
de refrigerante na rua, as mulheres do Zé Povinho, varriam o lixo caseiro e
colocavam moveis velhos, caixas vazias, galhos de árvores, sapatos usados, tudo
na calçada, e o Zé ainda jogava restos de construção na via pública. Depois das
chuvas, e cá para nós, nunca existiu um reino que fosse tão amado pelas nuvens
de chuva, e o resultado era bueiros entupidos, casas alagadas, e como sempre o
Seu Zé Povinho e familiares culpando o alcaide de plantão.

         O
sonho do plebeu sempre foi se transformar em fidalgo, e no reino, tirando a
antiga nobreza representada pelos carregadores de andor em procissão, alguns
deles de nariz tão empinado que viviam tropeçando pelas calçadas esburacadas da
freguesia. O interessante nos carregadores de andor, e que chamava a atenção do
povo vil, era que alguns dos que se estapeavam para carregar o santo, durante o
ano não cumprimentavam ninguém, eram incapazes de uma boa ação, de um sorriso;
eram de uma falta de humildade gritante, de uma arrogância constrangedora, mas
durante a procissão passavam por ser o exemplo do povo humilde, honesto e
trabalhador do reino.  

         O
reino sobrevivia, todos reclamavam, mas poucos partiam em definitivo para
outros lugares, a desculpa era que haviam bebido água da fonte, e a água não
deixava ninguém abandonar a cidade, a menos que tivesse desenterrado um
tesouro, encontrado ouro numa casa antiga, roubado os cofres alheios, ou
aprontado algo imperdoável.

         Uma
coisa muito estranha ocorria de quatro em quatro anos, as pessoas se
transformavam, passam a cumprimentar a todos, a demonstrar humildade,
gentileza, a saberem resolver todos os problemas da municipalidade, conheciam a
solução de tudo que atravancava o progresso, e bastava um voto seu para que
provassem que tinham razão, e nem era pelo salário de vereador, e sim por amor
ao reino, tão carente!

         Ano
que vem, ano de 2020, ano eleitoral; se preparem para os tapinhas nas costas,
as cervejas, os churrascos, e muito mais. O Tamanduá que dormia no formigueiro
e encobria o trabalho sujo das formigas, não vamos esquecer que não existem
inocentes no reino, já botou as garras de fora e começou a espalhar que é o
único que conhece o caminho da salvação; tem gente que acredita… Quem viver,
verá!  

 

Gastão Ferreira/2019

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