Os Amorim Fernandes

 

         A ilustre casa dos Amorim Fernandes estava às escuras, era a
véspera do Dia de Finados. Na noite que antecedia o dia dos mortos as pessoas
dormiam mais cedo, desde as cinco da tarde as crianças eram trancadas em seus
aposentos, as sinhás se revezavam na reza do rosário, os homens não tomavam
seus licores, os escravos não eram açoitados após o escurecer, e permaneciam
trancafiados na senzala, tanto os senhores como os cativos temiam a procissão
dos mortos, as janelas e as portas ficavam todas vedadas até o amanhecer.

         Contam as lendas antigas que na véspera do Dia de Finados,
todos os mortos têm permissão para visitar a Terra, rever afetos e desafetos;
eles perambulam à noite pelas sombras, pelos becos mal iluminados, sentam-se
nos bancos das praças e jardins, e antes do amanhecer participam de uma
procissão, e depois todos voltam à seu mundo sombrio. 

         As viúvas batem na porta dos ex-maridos que voltaram a
casar, inimigos gritam impropérios nas calçadas frente à casa de seus
assassinos, todos os defuntos tentam penetrar nas suas antigas moradias, e é
por isso que as portas e janelas são trancadas e todos os lampiões e velas
apagados.

         Naquela véspera de finados apenas o coronel Desidério Amorim
Fernandes permaneceu de vigia na sala do palacete depois da meia-noite, ele era
o guardião da rica família, o homem que com mãos de ferro detinha o destino de
muita gente na cidade.

         No
escuro acendeu um charuto e encostou uma cadeira na porta, assim podia ouvir os
ruídos vindos da rua; na praça frente ao palacete um alarido de vozes infantis;
-“Desidério, vem brincar comigo! Sou Raul dos Santos Medeiros, seu colega de
escola e que morreu de tifo há cinqüenta anos… Vem, guri!”

         -“Não vá Desidério! Abre a porta, meu amor… Sou Altiva
Regina, a sua primeira namorada, a que morreu afogada… Venha, estou morta de
saudade…”

         – “Saia logo, seu verme! Sou Antunes da Paixão, o homem de
quem você roubou a noiva… Tenho comigo um pedaço da corda com a qual tirei a
vida, é com ela que quero te enforcar, desgraça! Venha!”

         Foi assim até as três horas da madrugada; gritos, ofensas,
batidas na porta, pedras no telhado. Depois tudo serenou, o coronel prestou uma
maior atenção e começou a ouvir choro, lamentos, sussurros de rezas levadas
pelo vento; tomou coragem e espiou pelo buraco da fechadura…

         A Procissão dos Mortos passava pela Praça da Matriz, os
mortos cruzavam a frente de seu palacete, e o coronel Desidério reconheceu
muitos de seus antigos camaradas, alguns parentes. Parecia que os mortos sabiam
que eram espionados, eles olhavam fixos para a porta…

         No final da procissão, uma surpresa! Mathilde de Amorim
Fernandes, a irmã mais nova do coronel e que há dez anos fugiu da cidade com um
caixeiro-viajante, se aproximou da porta e olhou através do buraco da
fechadura; – “Meu irmão, eu e meu marido fomos assassinados, deixamos no
abandono duas crianças, procure por elas, são sangue do teu sangue… Não perca
tempo, pois no ano que vem estarás conosco na próxima procissão…”, o coronel
Desidério Amorim Fernandes desmaiou.

         Após muita procura os sobrinhos do coronel foram
encontrados. Tanto a menina Andressa, como o menino Fabiano tinham uma marca no
peito, sobre o coração; quando o coronel examinou a marca de nascença, suas
mãos tremeram e seu coração disparou; -“A marca da maldição dos Amorim
Fernandes, o sinal do lobisomem! Pobres crianças. É meu dever protegê-las, juro
que jamais revelarei o estranho segredo que acompanha a nossa família por
séculos…”

         Dez anos se passaram, Andressa era uma linda mocinha de
quinze anos, e Fabiano completara dezoito anos, e então, algo terrível
aconteceu na mansão dos Amorim Fernandes, mas isso é outra história.

 

Gastão Ferreira/2020

             

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