Zé do caranguejo

         O existir permanece um grande e indecifrável mistério;
aquele que nunca nasceu jamais sentirá a brisa suave, verá um nascer de sol,
uma noite estrelada, a beleza de um raio, o murmurar de um regato. O não
nascido não conhecerá a dor, a fome, a maledicência, a inveja, o ódio, a
fadiga, a conquista dos sonhos e o irremediável abraço da morte.
         Nascemos de mãos vazias e partimos a sós; os bens amontoados
durante a vida não seguem em nosso caixão, não nos acompanham no além túmulo. O
planeta Terra é um palco onde cada um de nós encena uma peça particular;
dramas, comédias, tragédias onde somos os personagens. Existem pessoas que
acumulam bens materiais, outras acumulam conhecimento, amigos, vivência. O
mundo é vasto e cada qual tem seu lugar, somos todos comparticipes do existir.
         Conheço José Lourenço de Souza há mais de trinta anos, alias
a cidade inteira conhece o José Lourenço, o único caçador de caranguejo
profissional de Iguape, o famoso Zé do caranguejo. Zé é um caiçara da gema;
quando jovem trabalhou na antiga Sanevale (Companhia de Saneamento do Vale), a
Sabesp de hoje em dia. Desde 1980 é caçador de caranguejo; duvido que exista um
iguapense, um apreciador do delicioso crustáceo que nunca tenha comprado do Zé.
         O Zé do caranguejo conhece nossos manguezais melhor do que
muitos especialistas em meio-ambiente; sabe que o caranguejo fêmea, após manter
relação sexual com o macho, desova apenas uma vez na vida… O caranguejo macho
é meio tarado e só têm relações amorosas com as garanguejas novas, aquelas
entre dez a doze meses de vida; a fêmea é disputada numa briga acirrada. O
acasalamento ocorre entre os meses de Novembro a Março, as larvas são liberadas
na água e seguem o seu ciclo de crescimento. No mês de Outubro e Novembro, o
caranguejo uça renova por inteiro a carapaça; de Abril a Outubro se enterram no
lodo e para tanto armazenam comida em suas tocas; eles se alimentam unicamente
de folhas em putrefação. No período em que caminham pelos locais secos, catam
folhas das árvores nativas do manguezal e as levam para a toca; cada caranguejo
tem sua própria galeria subterrânea e não admite invasor.
         Os concorrentes na captura de caranguejo são as cobras
caninanas e os mãos-pelada (guaxinim). O Manguezal não é local para gente
medrosa; sussurros, assovios, palavras estranhas são ouvidas, gemidos, passos
furtivos acompanham o destemido caçador. Zé do caranguejo tem muita história
para contar… São trinta e quatro anos de convivência diária com o manguezal.
         Zé é especialista em caranguejo-uça (u’as= caranguejo em
Tupi-guarani); foi através da cata diária que criou, alimentou e deu estudo a
seus sete filhos; um homem simples, mas com uma história de vida diferenciada,
conhece a fundo muitos segredos da natureza; doutores vêm de longe para buscar
seus conhecimentos e se impressionam com o saber do caçador caiçara.
         A história do José Lourenço parece banal; ele não escolheu
ser um homem rico, um estudioso, um profissional liberal… Veio ser um
aprendiz de vida… Hoje aos sessenta e sete anos, aposentado, continua caçando
seus uças; conhece coisas que desconhecemos, viu o que nunca veremos,
domesticou várias cobras caninanas, foi amigo de Lobos Guarás… Um homem
simples; um ser humano exemplar… Viva o Zé do Caranguejo!
Gastão Ferreira/2014
          
           
          

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