Por detrás da cortina

 

         Naquela casa antiga de paredes
seculares algo estranho acontecia; mesmo com todas as janelas, e portas
fechadas persistia um vento encanado vindo de lugar nenhum. Dona Joviana se
aproximando dos cem anos, muito bem vividos, lembrava de uma velha história
contada por sua avó, Maria Emerenciana Pontes de Albuquerque.

 

         Existe no casarão uma parede que
ostenta uma bela cortina de veludo, o inusitado é que a cortina não está
escondendo uma janela, um vão, um cofre, mas apenas uma parte descascada da
parede, e nesse local tem-se a impressão de que alguém nos espiona em silêncio.

 

         Todas as cenas trágicas que de alguma
forma marcaram a longa história dos Pontes de Albuquerque aconteceram frente à
cortina de veludo; pedidos de casamentos, ataques cardíacos, assassinatos,
ofensas, dramas e comédias que fazem parte do dia a dia de uma família
tradicional, todas sem exceção ocorreram neste mesmo local.

 

         Maria Emerenciana Pontes de
Albuquerque, vovó Merê, filha mais nova do lendário coronel Ervandro de
Albuquerque assistiu de camarote o desenrolar dos atos que marcaram a negra
sina da sua família; Merê estava com cinco anos de idade, e ninguém prestava atenção
numa criança brincando com a sua boneca de pano.

 

         O coronel Ervandro amava o poder acima
de tudo, no dia em que comprou um escravo que se dizia grande feiticeiro em seu
país de origem, tirou a sorte grande; Malic, o feiticeiro, fez uma conjugação
das forças do mal, juntou ao sangue de uma inocente criança, o veneno da jaracuçu,
a esperteza do lobo, a força jovem de um cativo, invocou um demônio da
escuridão, e criou na parede da casa senhoril um portal para o desconhecido, o
local foi coberto por uma cortina de veludo.

 

         Os espíritos dos mortos eram invocados
frente à cortina, um vento gelado anunciava as aproximações, Malic era o oráculo,
o encarregado das mensagens do além. Várias vezes a criança Merê, as escondida
presenciou as conjurações… Joviano deteve o poder, o mando, a juventude por
muitos anos, mas um dia a conta chegou, e tanto ele quanto o feiticeiro foram
tragados pelas sombras que habitavam por detrás da cortina de veludo.

 

         O filho mais velho do coronel Ervandro
herdou o domínio das sombras, e assim sucessivamente todos os primeiros filhos usufruíam
do poder, o pai de Joviana morreu muito jovem, recém casado, e nem sequer
conheceu a primeira filha; o poder só passava para os homens, nunca para as
mulheres… A cortina de veludo permaneceu calada por décadas esperando pelo
nascimento de um herdeiro com a genética de Ervandro de Albuquerque.

 

         Pedro Paulo, bisneto de Joviana atendeu
ao chamado das sombras; foi o último dos Albuquerque a obter os favores da
escuridão, morreu solteiro e de overdose. Por detrás da cortina de veludo o portal
permaneceu aberto, um vento gelado vindo de lugar nenhum ainda se desprende da
velha parede, sombras sussurram nas trevas, chamam por um novo mestre,
necessitam de sangue jovem, e de almas revoltadas para compartilharem os dois
planos da existência.

 

         A última bisneta de Joviana nasceu
estéril, adotou um menino de nome Jairo; guri serelepe, destemido, alegre e
brincalhão, uma tarde ele se escondeu atrás da cortina de veludo. Uma voz macia
vinda de tempos imemoriais segredou em seu ouvido; – “Bem vindo, Jairo! Jamais
nos esquecemos de você, Malic, nosso oráculo.”

 

Gastão
Ferreira/2020   

             

        

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