Eu ainda estou aqui

Outros tempos, outros costumes, outras vidas… Moro numa casa antiga, construção com mais de três séculos; muita gente passou por aqui, gente boa, gente maldosa, pessoas criadas de rédeas curtas, pessoas que pensavam em salvar a sua alma imortal açoitando cativos, assassinando desafetos, matando crianças não nascidas…

Como sei de tudo isso? Antigamente todas as famílias tradicionais tinham um livro, tipo um diário, onde contava fatos memoráveis, algo que devia ser preservado para o futuro, tal livro era chamado de memorabilia… Encontrei o livro.

Na época em que Guilhermina Andressa de Souza e Silva foi a matriarca da família o livro se perdeu; sabemos que Dona Guigui foi terrível, mandona, perversa, cruel… Uma mancha negra na história de nossa honrada família…

Dona Guigui dormia pensando em ouro, sonhava com o ouro, e acordava querendo mais ouro; fez conchavos com os famigerados Piratas da Barra do Ribeira, chegou a vender uma filha bastarda do coronel Simplício do Amaral Souza e Silva, seu digno esposo, para ser escrava sexual nas casas de tolerância do Sul…

Ela jamais tolerou as escapadas do marido coronel, e quando descobria mais um de seus bastardos, ela mandava matar… Foi assim que Luciano Lua criou a fama de lobisomem, pura invenção de sinhá Guilhermina, ela não sossegou o pito enquanto não viu Luciano Lua crivado de balas de prata…

Quando Dona Guigui faleceu, o senhor vigário afirmou que assistiu ao vivo e a cores nossa amada e pura Guilhermina Andressa de Souza e Silva sendo levada por alguns anjos ao trono de Deus, inclusive observou que a famosa Santa Liduina, protetora das pessoas de posses, lhe ofertou uma coroa de ouro maciço…

Depois da morte de Guilhermina coisas estranhas tiveram início no casarão; gritos de pessoas sendo espancadas, risos misteriosos, sussurros nos corredores vazios, vento gelado na sala, pratos despencando dos guarda-louças… Muita gente enxergando Dona Guigui tentando se comunicar…

Meus antepassados foram aos poucos abandonando o casarão, não aguentaram as visagens, os gritos, os puxões de cabelo, as rasteiras, e muito mais… Ficaram na casa apenas os sem futuros, os sem profissão… Herdei a casa, e estou tentando a reforma, eis o porquê de ter encontrado o memorabilia.

Ontem minha prima Sirlei veio fazer uma visita, ela vê gente morta, sente a presença de espíritos, e por vezes até mesmo conversa com eles… Contei à ela sobre o diário de nossos antepassados, sobre nossa malvada ancestral, ela ficou tonta, ela ficou arrepiada, ela começou a tremer, ela sentou na velha poltrona preferida de Guilhermina Andressa de Souza e Silva, ela abriu seus olhos agora sem vida, sem luz, olhos de pura escuridão, olhos de gente morta, e me disse: – “Eu ainda estou aqui!”

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